Tabanka do Huambo

Saber compartilhar cumplicidades, na vida, como forma de cultura e de ciência. Cumplicidades de vivências com os amigos numa abordagem vital para a sobrevivência do Planeta Terra.

Nome:
Localização: Coimbra, Portugal

Nascido no Huambo, em Angola. Médico de Medicina Geral e Familiar pela Faculdade de Medicina em Coimbra. Médico na Lousã.

2005-04-29

A DESCOMPASSO COM O AMOR

Os nossos medos e as nossas prisões parecem envolver maiores riscos e serem mais angustiantes quando falamos e pensamos em amor. Todos nós temos imensas coisas dentro de nós por arrumar mas também é verdade que não gostamos de correr riscos quando sabemos que, por eles, pagamos um preço demasiado elevado. E o amor e o amar têm um preço muito alto e envolve riscos que nos incomodam. Porque mexe com os sentimentos, as emoções, os desejos, as cumplicidades, os prazeres.
O amor, mais que os outros sentimentos, chega a envolver alguma violência sobre nós porque é exigente e perturbador. Chega a ser incómodo e sofredor deixar que nos amem. É aquilo a que todos resistimos mais ao longo dos tempos. Aceitar o amor e ser amado é sinónimo de correr muitos riscos. Sofre-se. Temos medo de falhar e de não estarmos à altura dos desafios do amor. Temos ciúmes. Sentimos posse, angústia e sensação de perdermos os desafios que o amor nos coloca. Torna-se incómodo. Roçamos a fronteira do irracional. Não gostamos de ser violentados. Muitas vezes não entendemos o que é importante e não sabemos onde colocar o nosso coração.
A melhor maneira de fugirmos ao amor e de amarmos é assobiar para o ar e fingirmos que não vemos o que é óbvio. Não ouvirmos o bater acelerado do coração. Temos as celas da nossa insatisfação a fechar-nos o espaço para sermos livres para amar. Espaço que bastas vezes está ocupado com outras coisas, a descompasso de não priorizarmos os desejos do coração que nunca acompanham os da cabeça. Devemos quebrar as correntes, derrubar paredes e muros de forma a criarmos o espaço que nos falta. E não fugir ao medo de tropeçar em alguma coisa ou em alguém. Pela vitória do amor.

2005-04-28

TABANKA ASSIGO

Hielele le le le...
Hielele le le le
Tabanka di tcham di tanqui
Djunta tabanka Achada Leite
És reuni és toma troca
Pa manifesta assomada
Hielele le le le...
Hielele le le le
É bonito pêga mudjeres di saia gaita gaita
Homi cu calça ramangado, oto cu cruz na mon
Oto cu bandera, oto cu spada... Sima Tiriva nton.
Pé na tchon, pé rixo ta massa spinho ta bai.
Dipôs, pa bu odja quês mudjeris tudo na renqui si.
Cu mumi fita, di munti coris, sima verde, amarelo, côr di rosa, castanho, branco...
Ma más bonito ainda é pa odjass tu canta assi.

Manuel Lopes Andrade - Júlio César Rodrigues

2005-04-26

PERDIDO NA CIDADE

Lisboa, Abril de 2005. Desiludidos ficarão aqueles que esperavam que eu fosse escrever sobre as virtudes e os defeitos de um Abril em Portugal e de quem nele participou, mesmo os que não queriam.
Não! Hoje não! Não me apetece e não estou para aí virado. Nem tão pouco me inspiro para descrever o colorido de suaves vermelhos, verdes e cinzas que fazem o mosaico desta Lisboa que eu também amo e que visto do ar contrasta com o deslumbrante brilho do Tejo.
Hoje visto as minhas velhas jeans, a camiseta já gasta pelo tempo, "dou corda" às sapatilhas, e inicio um percurso português, cosmopolita e autêntico. Percorro o Campo Grande e os seus jardins, devagar, devagarinho e vislumbro os telhados na inquietude dos velhos bairros, cruzo-me com as suas gentes em loucas correrias à procura sabe-se lá de quê e indo para o sei lá, refresco-me com a brisa dos horizontes que sopram de uma modernidade que tarda em chegar.
Na minha hora, hora de matar o meu bicho, resolvo sentar-me num daqueles lugares que existem na cidade e onde se finge tomar uma refeição sempre, com o tempo contado. A Camponesa, a seguir ao Javali, que é a seguir à Vila Rica, anuncia comida caseira, rápida e saborosa. Olho, de relance, o anúncio que anuncia comida, escrito numa folha branca A4 a marcador azul e colocado numa placa de anúncio Olá, e não encontro nada de caseiro.
Enfim! Vamos a isso. Sento-me numas mesas, toalhas azuis debaixo de umas de papel presas por molas, numa curva do passeio, chapéus de sol da Coca Cola, abençada sejas Coca Cola que estás em todo o lado, aproxima-se um empregado, talvez com uma ementa. Nunca o saberei porque de imediato peço um bitoque e uma imperial, loira e super gelada. Enquanto espero, naquele passeio, controlo as pessoas que correm de um lado para o outro, à procura do presente calculo. E eu ali estou no meio da gente, daquele trânsito infernal, absorvendo fumos e poeiras que me aumentam a minha sede, sobrevoado, pasme-se, por aviões que vou tentando saber de onde porvêm. Passatempo arranjado à última da hora e que me levou a descobrir que deve ter acabado o papel autocolante para renovar o desaine da companhia aérea portuguesa, pois o rabo dos aviões continua igual ao do antigamente e não com as pinturas pré-primárias de um modernismo saloio.
Um jovem, cabelos e barba grisalhos e desgrenhados, talvez poeta da vida, procura no caixote do lixo, da rua, a sua comida caseira, rápida e saborosa. Já estou eu a tragar um bife retirado dos cornos da vaca de tão rijo que é, dois tomates que já deram a volta ao mundo fechados num taparuere, umas batatas fritas de um tom amarelo icterícia e um ovo que deve ser de galo anémico, pois gema e clara confundem-se num tom pálido e doentio. No final um café deslavado com sabor a água de lavar pratos. Uma satisfação percorre-me no final desta rápida refeição. A cerveja era estupidamente gelada e ninguém me ouviu ao enviar para a atmosfera o meu ruído de descontentamento vindo dos interiores gástricos. Ningém me reprimiu ou fez um comentário de reprovação ao acto de um desesperado. Continuava, a multidão, parada à volta da minha mesa à espera que o boneco vermelho do semáforo mude para verde. E ala que vamos todos embora. Eles e eu. Sem antes ter de desembolsar 6 e 45. Agora reparo que o relógio da antiga Feira Popular parou às 6 e 45.
Hoje continuo a gostar mais do fascinante mundo do campo. Aqui o tempo é mais harmonioso, o sol sabe-se espreguiçar, o ar é mais alegre e convidativo e a comida é mesmo caseira e saborosa. Não é rápida.

2005-04-22

A GULA

Em tempo de mediatização de uma parte da religiosidade da humanidade e, talvez, da minha, refiro-me, claro, à escolha papal, confesso que dos pecados que mais gosto de cometer é o da gula. Não há interrupção de telejornal, primeira página de jornal, rádio sintonizada ao Vaticano para anunciar o nome do cardeal que vai ser o chefe, o substituto e sucessor do João Paulo, o Segundo, que me leve a interromper o dito pecado.
Se me falam em pecados conventuais, fruto da pastelaria medieval existente em Portugal, então afirmo que a gula é uma benção dos anjos para o mundo. Que me perdoem os mais puristas. Bem aventurados aqueles que foram predestinados a cometer os sete pecados mortais. E abençoados sejam os segredos saídos dos conventos, sabe-se lá por que meios (acredito piamente que não foi preciso fazer distinção entre fumos de carácter étnico, brancos ou pretos), e que nos deliciam os sabores e o gosto de estarmos vivos. Numa qualquer esplanada de café. Segredos que descobri, e depois experimentei, já tarde, na velha baixa da cidade do Porto, nas mesas da Brasileira, quando ouvia toda a sociedade, a bem colocada sociedade diga-se, pedir "um pastelinho e um chá sem fumo".
Gosto de sentir a frescura intensa que nos chega dos sabores e que leva-nos a delirar com os jesuitas vimaranenses baixinhos e fininhos, os doces de "massa sobreposta, recheada a chila, ovos e amêndoas" dos folhados, as bolinhas do Convento de Santa Clara, "genuínas bolas brancas de chila, cobertas de farinha, recheadas de amêndoa com leve sabor a canela", o toucinho do céu, os ovos moles de Aveiro, os serranitos da Lousã abençoados com castanha e mel, as arrufadas de Coimbra e os pastéis de Tentúgal. Resultado da lista? Muito bom com distinção! Reafirmo que detesto barrigas de freira. Sou a favor do Planeamento Familiar!
Este mundo da doçaria feita com as santas mãos das personagens monásticas cria um universo de sabores e paladares que transmite grande parte da magia existente para lá dos muros conventuais.

2005-04-19

HÁTOR, DEUSA DO AMOR

Entro no Le Caprice e verifico quão majestoso é o rio que se estende para lá da linha quase recta do horizonte. Capricho meu tentar descobrir a faixa verde verdejante de terra cultivada que vem da fronteira do Sudão até ao delta. E vou contra a corrente. Sempre tentando remar contra os desígnios de quem me tenta convencer que os fellabeen egípcios serão os agricultores mais felizes do continente. Mais tarde descobrirei, nas ilustrações dos túmulos faraónicos dispersos pelo vale, a vida difícil que levavam e levam os agricultores e pescadores deste paraíso de água. Maa al salama o salam Cairo. Adeus e até sempre.
Ergo o meu copo de tinto Omar Khaggam de 2004 e brindo aos deuses, com os amigos, por terem protegido séculos de história, que é a história da humanidade. Sinto uma sensação de frustação de não ter o tempo disponível para efectuar esta viagem, de Alexandria a Assuão, num dahabiyya, o velho barco à vela que fazia esta estimulante viagem no século XIX. Mesmo assim espero e peço a Hórus, Isis e Hátor que me testemunhem a grandeza dos seus feitos.
Hátor era a deusa do amor e do prazer e a ama de leite e amante de Hórus. Todos os anos era levada numa barca para Edfú para se unir ao seu amor Hórus. Seguia-se o Festival da Embriaguez para celebrar a união. Mais tarde Hátor deu à luz o filho Ihy, filho do amor com Hórus, em Dendara. Ao amor de Hátor sorvo mais um trago do tinto egípcio que ainda enche o meu copo. E brindo, outra vez, com os amigos.
Esta história é-me contada ao pôr de um sol fantástico, no Nilo, olhando as areias do deserto onde se vislumbram as silhuetas dos barcos do deserto, os camelus dromedarius, no seu caminhar ondulante, outra peça fundamental da vida árabe. Shoran pela dádiva dos deuses.

PONTOS CARDEAIS

Confesso que vou pecar! Não percebo nada de concílios, recolhimentos e muito menos de Cardeais e Papas. De cardais só me lembro dos pontos, ou seríam cardinais? Norte, Este, Sul e Oeste são pontos cardeais, de certeza. Os outros que serão?
Por falar em pontos, não os cardeais ou cardinais ou lá o que é, mas em pontos pretos. Daqueles que aparecem em peles seborreicas, por vezes purulentas e pustulentas, tipo acne dos anos vinte, sedentas de demo, pois alguma massagem facial, movimentos de vai e vem com a direita e a esquerda, a mão claro, em material erecto, são obras do demo, dizia eu falando de pontos, será que nesse encontro de gerontes não haverá um ponto preto? Daqueles que se bateu, em lautos banquetes, mais vinho que água no copo elevado, não à exponencial potência, mas elevado aos céus, se bateu, afirmo, pela democraCIA em terra mãe, minha terra pátria, minha Angola. Tipo Zacarias Camuenho. Será que nenhum destes pontos pretos será papável para aumentar, ou diminuir, depende do tamanho do jacto, não o presidencial mas o urinário prostático, o nosso fraco estímulo de sermos aquilo que somos. Ou os nossos jornais, rádios e Tv's ainda estão vendidos ao imperialismo azeri e não referem um velhote da terra que possa chegar tão perto do céu e ser o verdadeiro papa africano, papa negro. Será que eles estão apostados em eleger o único representante da CPLP, o Policarpo (só porque tem vários carpos)? Desfaz-me as dúvidas, senão nem durmo, meu espírito santo. E vou, de repente, à pastelaria Suiça comer aquele bolo que muitos já comeram, o Cardeal. Os russos esgotaram. E as Patas de Veado estão a colocar ferraduras. Como eu gostaría que saísse fumo preto!!!

2005-04-18

WALI aL-AHAD

Sento-me e sinto-me naquele café, lindo de morrer. Só quatro mesas. Oleados anunciando Lipton Ice Tea, estupidamente amarelos e vertendo emoções de viagens que só eles conhecem. No primeiro andar, belos desenhos em ferro forjado, desenhos árabes que só eu sei o que poderão dizer. Um par de namorados, ingleses?, suecos?, nunca saberei, beijam-se apaixonadamente. O dono, um árabe de mais de cento e vinte quilos dirige o trânsito dos clientes, pondo em marcha um movimento que nunca provoca engarrafamentos. E de cada vez que grita com o único empregado, puxa uma passa do seu cachimbo de água. E envia um fumo feito imagens como saído da lâmpada de aladino.
Wali al-Ahd, abwas, o café da minha tarde no Cairo. Sentado com um amigo feito história dos conhecimentos que me ensinou em Sakara, Gizé, Cidadela ( Al-Qalaa), Museu Egípcio, o eterno fascínio de Cleópatra, Heliópolis, e noutros locais. Emad Khalifa foi e é o cúmplice do meu agradecimento aos sonhos faraónicos da minha infância.
Hoje ensina-me que a dança do ventre remonta aos tempos dos faraós, mas a dança que hoje se vê nos templos turísticos de diversão deve-se ao contacto do Egipto com a Europa nos séculos XVIII e XIX. Os movimentos sensuais das bailarinas que misturam danças tradicionais, ciganas e outomanas libertam a imaginação dos europeus reprimidos. É muito graças às suas descrições que a dança do ventre foi associada à prostituição. Apesar da populariedade, a dança tem um estigma social que desencoraja as mulheres egípcias de abraçarem a profissão, estando os seus lugares a serem ocupados por bailarinas estrangeiras. E ficou mais uma lição aprendida.
E bebemos um karkade, infusão de folhas de hibisco. Hoje prefiro bebê-la fria. Amanhã vou contrariar a corrente. Inicio a subida do Nilo. Museu ao ar livre do mundo.

2005-04-14

DERVIXES

O calor anuncia a tempestade de areia que está por perto. Sento-me naquela esplanada, ou será Magia, que anda para cima e para baixo, no Nilo, a mostrar o Cairo que quer abraçar o rio. Não sei, nem quero. Hoje apetece-me esta esplanada, quente, sem uma brisa nem uma notícia do longe. Sussurro uma frase qualquer à procura do ávilo do al-Garv. Apetece-me estar só contando estórias simples. Peço, de repente, duas Sakara, frescas. Porquê duas? Nunca o saberei. Vejo, alguns de tez rosada, loiros, azuis no olhar, outros esbugalhados, dizendo inxhalá numa língua que ninguém quer como sua. Olham uma rapariga esforçando-se na dança do ventre. Alguém, árabe, me diz que esta dança não é a tradicional. Ven(tre)de-se aos turistas. Então fala-me dos dançarinos Dervixes.
Os Dervixes do Cairo são membros da seita Mawlaiyya dos Sufis, seguidores de um ramo semimístico do Islão. Os Sufis eram originalmente associados à pobreza e à autonegação e usavam vestes grosseiras de lã sobre a pele. O nome de Sufi deriva de suf, a palavra árabe para lã. Os Sufis aspiram à união com Deus, através da meditação, da recitação, da dança e da música. Os Dervixes proporcionam uma visão rara deste fenómeno, de outro modo oculto, na sua dança de movimentos rotativos. Bailarinos com trajes coloridos giram como piões enquanto músicos tocam um ritmo hipnótico, abanando a cabeça de um lado para o outro.
A minha cerveja com nome de mulher, Sakara, chega ao fim e cansado pelo ritmo da dança, meditando na rotação corpórea dos dançarinos, numa diálise perfeita entre o líquido descoberto pelos egípcios e o meu suor, vertendo a minha cerveja em movimentos sensuais deglutidos pela sede de um amanhã feito amizade, abraço, eu, o Cairo nesta noite quente. E o Nilo corre de mansinho, como todos os rios, em direcção ao mar.

2005-04-12

COLONIALICES

Cansado das visitas aos tempos idos, repouso no silêncio da Mesquita de al-Azhar, principal centro de aprendizagem e o mais respeitado do mundo islâmico. O silêncio faz-me repetir os sonhos que me animaram ao percorrer as ruas do bazar. Explosão de brilho e cor, vendedores luxuriantes, paixões saídas de uma dança do ventre, trajes garridos. Regateio o preço de tudo e nada. De repente, apetece-me falar com os amigos. De cá e de lá. De longe.
Devagarinho, sento-me na esplanada do café Fishawi's. Já percorri as ruelas do bazar de Khan al-Khalili, o bazar construido em 1382 por Garbas al-Khalili, estribeiro do sultão Barquq. O bazar cresceu à volta de vários khans (também chamados wikalas) que serviam de armazém e alojamento para as caravanas de mercadores.
Repleto de pequenas mesas, paredes repletas de espelhos enormes e antigos. Mais de 200 anos de história e estórias. Hoje sim, fumo sheesha e peço uma beerah estupidamente gelada, transpirada e abençoada pelas gotas orvalhadas da paixão. A minha Stella escorre-me suavemente pela rua do meu desejo. Apetece-me um beijo meu amor. Conta-me aquela estória que os meus amigos vão gostar de saber.
Em 1845 Luis Filipe de França ofereceu um relógio a Mohammed Ali Paxá que se encontra na torre da Mesquita de Mohammed Ali. Relógio que foi trocado por um dos obeliscos de Luxor, hoje objecto de relevo no Palácio da Concórdia, em Paris. Relógio que nunca funcionou por falta de algumas peças.
Espertezas saloias, dirá o meu pai que é transmontano. Economia de mercado, gritam os democratas. Globalização, ouve-se dos politicamente correctos. Colonialices, digo eu que sou africano.

2005-04-10

Al-Kahira

SabaaH al-khayr, Cairo. Bom dia, Cairo. Abre-se a porta do avião, o calor não é muito mas a humidade refresca-me a pele e a memória. Tenho um novo encontro com as cores, os cheiros, a luz, as gentes do meu Continente. O Cairo está aqui tão perto e eu quero-o abraçar. Considerada a cidade africana mais populosa, com cerca de 16 milhões de almas, o Cairo é um labirinto de ruas movimentadas, cheias de vida, com uma mistura única de cenários, sons e aromas, e sinais vivos do passado. O seu trânsito é caótico. Não existem regras fixas, reina a anarquia. Estou em casa e pressinto o meu primeiro aplauso.
Percorro o centro da cidade, moderno e com belos exemplares da arquitectura do séculoXIX. Gezira e Rhoda, refrescadas pelo Nilo, não me seduzem tanto. Sinto que começo a ficar apaixonado pelo Cairo. Mais o Cairo Islâmico com os seus minaretes e cúpulas, bazares e vielas e que me evocam cenas das Mil e Uma Noites.
Midan Tahir é o cérebro do Cairo. Todas as ruas vão dar a este ponto da cidade, por mais que não seja para visitar o Museu Egípcio. Percorro Sharia Qasr el-Nil e Sharia Talaat Harb onde os visitantes procuram o seu mundo ocidental de comércio. Não gosto, apesar do colorido, das avenidas cheias de armazéns, lojas e cafés. Como em Paris ou Londres. Assim, devagarinho, abandono o local.
Vou à procura do meu primeiro abwa (café), espaço social onde se conversa com os egípcios. Quero descontrair do calor e da humidade. Lembrar-me dos amigos que ficaram. Não me apetece beber shai ou abwa, muito menos lamoon, karkade gelado, zabaady ou sahleb. Hoje também não me apetece a sheesha. Ainda não estou preparado. Sei que não posso pensar em álcool. Mas, apetece-me, recordar os meus ávilos. Peço uma Lqcal Beer, geladérrima. O trago amrgo do malte percorre-me a imaginação do passado glorioso deste país e prepara-me para me fascinar com a nova cidade que já se chamou Al-Kahira, a cidade africana que Gamal Abdel Nasser, em 1952, tornou na capital com uma verdadeira identidade moderna e fascinante.

JOÃO PAULO

Confesso que a unanimidade e a unicidade sempre me fizeram comichão. Melhor dizendo, dão-me um prurido que não consigo nem aliviar com banhos gelados nem mesmo com cetirizina. Mas como quem tem comichão coça-se...
Depois também não sou apreciador de que morto, o tipo era um amigalhaço, um bom homem, o melhor dos seres humanos. Detestável! Somos o que somos e não devemos mudar depois de estarmos gélidos deitados em decúbito dorsal na pedra ou na caixa de cedro do Líbano à espera de nos meterem no buraco escuro e fundo. A morte é a pior das hipocrisias. Parece que não temos um único ser humano que não goste de nós. Todos nos adoram. Por isso é que eu amo a vida.
Lembro-me que estes meus sentimentos podem ser recordações de um tempo de escola em que perdemos, aos 14 anos, uma amiga. A mãe do nosso amigo Hélder tinha morrido de cancro. Logo tinhamos direito a mais um dia de feriado às aulas para, unidos em unanimidade e unicidade, irmos ao funeral da mãe do amigo. Quase dia de festa. A professora Yolanda vendo que tudo estava de pernas para o ar resolveu dar-nos uma lição que ficou para a vida. Ela ensinava montes e serras, países e capitais, cidades e rios, mares e lagos, produções e culturas, recursos naturais. Mas nesse dia a aula foi sobre a vida e a morte, a amizade, o ser humano, a solidariedade. E choramos solidários e unidos a mãe do nosso Hélder.
Por isso detesto a Roma destes dias. Até sempre João Paulo.

2005-04-05

VOLTEI

E tenho tantas histórias e estórias para contar. Sempre que vou lá deixo ficar um pouco de mim. Mas volto feliz. Sou de lá. E quanto mais ao Sul mais me sinto eu. Com o meu povo que é um continente. Olho o céu e procuro a minha estrela polar que me leve a voltar a amar o meu cruzeiro do sul. Espero o nascer do sol que me traz novas do amor. Com a brisa do zulmarinho desenhando os perfis dos amigos. O barco dos sonhos desliza suavemente à procura da brancura da galabia da minha amada. O beijo que trocamos bem perto do desejo leva-me a esconder a lágrima que rola a caminho do meu mar. Paro na aldeia Núbia e petrifico com a visão da minha infância. Aqui estou. Correndo no pátio térreo vendo sombras de um passado que nunca esquecerei.