Tabanka do Huambo

Saber compartilhar cumplicidades, na vida, como forma de cultura e de ciência. Cumplicidades de vivências com os amigos numa abordagem vital para a sobrevivência do Planeta Terra.

Nome:
Localização: Coimbra, Portugal

Nascido no Huambo, em Angola. Médico de Medicina Geral e Familiar pela Faculdade de Medicina em Coimbra. Médico na Lousã.

2005-03-24

DOCE TAMISA

Quando Samuel Johnson escreveu, em 1777, que "quando alguém está cansado de Londres, está cansado da vida, porque em Londres há tudo o que a vida pode oferecer ", este reconheceria os muitos lugares maravilhosos das duas margens do Tamisa, que corre preguiçosamente em direcção ao vale de Windsor e Hampton Court, além da Abadia de Westminster e da Catedral de S. Paul e da Torre, até Greenwitch e ao mar.
Em 1911 H. G. Wells escreveu que "para mim Londres é a cidade mais interessante, mais bela e mais maravilhosa do mundo ". Claro que posso estar de acordo porque há momentos que são embelezados pelas circunstâncias de poderemos tomar café no Covent Garden ou vagabundear pelos becos da City, e termos tudo o que a vida nos pede.
Entro no Magia e percorro o Tamisa, história líquida de uma cidade que se quer a mais nobre da Europa. Mas estremeço ao passar debaixo da London Bridge onde, em tempos idos, eram colocadas as cabeças decapitadas dos traidores, enfiadas em filas, e expostas sobre as portas fortificadas. E se olho, de seguida, para a Torre de Londres o espectáculo torna-se dantesco com a visão dos prisioneiros, condenados á morte, cujo sofrimento está bem documentado nas águas deste mesmo mais nobre rio da Europa.
O Magia pára debaixo da Torre Branca e ao som do Hino da Alegria volteia uma dança de futuro e afugenta-me os medos e os terrores que a luz da lanterna de um beefeater teimam em me perseguir. E bebo mais um copo de Chateau Seuaillac de 2000, um tinto de Bordéus que já me faz esquecer outro tinto da região de Mendoza, Argentina, um Vista Flores, que tinha despachado ao almoço no Café Royal.

2005-03-22

TAPETES

Às vezes o destino, seja o fado ou a direcção para onde vamos, leva-nos a sítios mais que perfeitos. Confesso que Almalaguês não é um sítio que esteja nos catálogos das multinacionais do turismo, como não está, de certeza, Torre de Bera, Chinguar ou Assomada. Mas Almalaguês sempre me fascinou, desde os tempos da ciência, da cultura, da música e da história. Passava horas a ver fiadeiras a bordar o linho e a fazer tapetes que só mãos de artistas conseguem. E a ouvir as suas histórias e escutar poesias de séculos. Se Arraiolos é um marco na arte de fiação, Almalaguês sempre viveu da amizade e da solidariedade de quem sabe o que quer. Um dia levei um tapete desta região a um amigo de Buenos Aires que me disse que nem Van Gogh tería feito melhor. Confesso que a partir daí sempre tentei olhar para a tapeçaria de forma diferente. Em Almalaguês, Arraiolos, Fez, Sid Bou Said, e antes da guerra Bagdad. Turcos ainda não, a não ser em Berlim. E comecei a saber que afinal quando me deitava no tapete o fazia já com alguma paixão, sonhando mas tendo a carteza que nenhum deles era voador. E quando ía para o tapete, mesmo no judo, sempre tive a coragem de escolher as companhias. Ainda hoje leio e amo no tapete. E separo o bom do mau. Achei sempre degradante os tapetes de papelão à beira das estradas para as romeiras fazerem o seu negócio. Talvez um dia Almalaguês seja um ponto de encontro da cultura da tecelagem.

2005-03-20

EMBARAÇADO

Descobri que existem expressões que espremidas não deitam sumo nem servem como vitamínico para curar algum espirro mais intenso. Claro que às vezes temos os eruditas da língua e da escrita, que resolvem dar conteúdo ao que se escreve, exprime ou espreme. Depois temos os práticos que resolvem resolver (não é erro) tudo que parece difícil mas que eles, com sabedoria teórica mas sobretudo a prática, tornam fácil. Um parêntesis para afirmar que uma das melhores máquinas fotográficas que tive, com lentes Zeiss, foi uma Praktica, da DDR.Voltando ao início tipo pescadinha de rabo na boca, direi que sofro com expressões como ventre agudo! E dou comigo a pensar porque será que não existe um ventre grave ou esdrúxulo? Ou não é verdade que quando temos um ventre agudo não é uma situação grave? E o nosso ventre da felicidade tipo maçã, cimentado pelos excessos de sedentarismo, não será uma esdruxulice ventral que pode ser uma situação aguda pronunciando a gravidade da doença? Pois só dará valor ao ventre agudo quem alguma vez o teve. Agudizado, por exemplo, por um cristal rômbico rasgando o canal uretral depois de ter abandonado um rim e enviado para uma bexiga que o rejeita. São mais fortes que as dores de parto, clamam os machões quando aliviados do agudo da situação. Assim prefiro um ventre aumentado pela felicidade de um filho que vai nascer. Esse não é agudo, nem grave, nem nada. Está embaraçado, o ventre!

2005-03-16

VENTO NORTE

O frio do vento sopra mesmo frio, cortando a vontade de gostar do Norte. Caminho, sem pressa, devagarinho como o barco de papel que um dia, em pequenino aprendi a fazer e o colocava num lago com ondas pequenas e feito de àgua da chuva. Da minha chuva do planalto. Hoje caminho na Oxford Street à procura de Shakespeare, Mary Poppins, Alexander McQueen, mas só encontro o "people" vindo da África, da Ásia, da Europa, das Américas, da Oceania. Do planeta Terra. Viajo pelo mundo nesta cidade que é europeia mas também é de todos nós. Investigo e procuro, qual Sherlock Holmes, se existe por aqui o zulmarinho dos meus dias felizes. E não o encontro. Só encontro as correrias de quem procura chegar primeiro a sítio nenhum. Somos todos iguais.
Sento-me no Simpson's in the Strand e afago a minha tristeza num vinho trazido do Sul. Da minha África que também tem o seu tinto. E no gelo do Norte aqueço o meu corpo e a minha alma com um copo de Bolland Cellar 2003. Os 14,5 graus de graduação e o trago de banana que sinto na desgutação final do saboreio eterno deste milagre de Baco faz-me esperar pela noite e sonhar. Como é lindo o país de Mandela! Esta dádiva dos deuses continua a aquecer-me, pela noite dentro, nesta Londres enregelada pelos ventos do norte. Estamos em Março.

AUTÓPSIA

Abri o meu coração, a minha capacidade de pensar, de estar em permanante discordância com as atitutes e as normas de orientação impostas por uma sociedade que não é de verdade. Assim fico preso à imagem que sempre me derrotou a alegria, quando nas aulas de Medicina Legal e com o bisturi rasgava um corpo gélido colocado na banca dos retalhos. Tudo me era frio e sem sentido. Abria-se o peito e o abdómen de um desconhecido, com cortes perfeitos, e acabávamos por encontrar sempre as mesmas coisas, os mesmos órgãos. Onde estavam as emoções, as sensações, as paixões, as almas, o "fogo que arde sem se ver"? Onde? Ou seríam os sinais do enfarte que culminavam com a chamada para a causa de morte? Nunca o saberei. Como nunca encontrei o pensamento, o raciocínio, a racionalidade, a atitute, quando com a serra eléctrica separava a calote do crâneo. Imaginava os escalpes e via filmes sem sentido. Ainda hoje não me libertei das imagens frias e gélidas da morte e desobedeço, quase sempre, quando sou chamado a verificar o fim da vida.

PEDRAS E FRASES

Existem muitas pedras e muitas citações e, por vezes, frases anónimas que me levam a pensar que estamos e fazemos parte de todos os lugares. Lembro-me de ter lido uma frase, numa parte qualquer do planeta, frase pintada numa pedra, de um autor anónimo e que foi dada a conhecer universalmente pelo Luis Sepúlveda, que me ficou na memória para sempre. Não sei se foi na mesma pedra e no mesmo lugar onde o Luis a leu. Mas sei que a frase dizia "Eu estou aqui e ningém contará a minha história".
São estes escritores marginais, os seus relatos e as suas histórias que nos fazem o elogio dos sonhos, a defesa da vida e da dignidade humana, a luta pela justiça e igualdade, o valor supremo da universalidade. Às vezes são dolorosos testemunhos do sofrimento mas de uma grandeza que não são senão pequenos fragmentos de vidas vividas à margem dos poderosos.
Os meus passos ecoam nos túneis escavados na cidade de Londres e onde se movimenta uma multidão de solitários. Saídos sabe-se lá de onde. Aí oiço a multidão distante, uma canção sofrida e tocada num violão centenário, satisfaço o pedido de um cigarro e de uma libra, despedaço o coração no marginal que bebe até à anestesia total acompanhado pelo filho e o cão. O álcool desfaz-lhe os sonhos. E a sociedade caminha indiferente a este sofrimento rotineiro sofragado pelo egoísmo, pelo dinheiro, pela raiva, pela não aceitação.
Relembro que não devia estar cúmplice dos marginais se bebo com os Sir de sua majestade no seu castelo que não é das Mil e Uma Noites mas o castelo que conta histórias de desamores e dos horrores servidos em livros infantis. E bebo de um trago uma Eau de Vie da região de Vallais, Colline de Daval, da quinta de Poire William. Mas mesmo assim resisto e penso.

2005-03-14

GELADO

Frio. Muito frio. Gélido como um cadáver deixado á beira do abismo e sem ninguém para o reclamar. Identificar? O quê e quem? E eu que cheguei tarde e parto cedo. Parece que já me aconteceu. Na vida e aqui e agora. Parece estória de África. Vou ali ver outras cores, outras músicas, outras línguas, outros povos, outras imagens e quando volto já nada existe. O poder foi tomado e eu fico na rua, sózinho, à procura de um novo rumo. E onde estão aqueles que quiseram fazer a viagem comigo? Onde? Olho para o mar, para o céu e só vejo ondas de água e de nuvens e não encontro um palmo de terra firme onde possa sonhar. Quero saborear a bebida quente de um chocolate e só bebo uma água sem gás, natural. Vou à deriva dos pensamentos e navego tentando encontrar a tábua da minha salvação.

Texto final: Porra volta senão endoideço!

2005-03-10

INVEJAS

Há nas Tabankas globais, e já tenho vindo a reparar há algum tempo, uma nova classe de profissionais que eu, simpaticamente, os chamo da inveja. Alguns raiam mesmo a fronteira e chegam a ser invejosos. Tipo agência de viagens que não querem que os "turistas" viagem para onde querem. Só para onde as multinacionais do turismo entendem.
Isto vem a propósito dos burgueses, que não da burguesia. Eles ficam invejosos porque se vai de férias para onde o dinheiro permite e eles vão até ao Algarve. Danam-se porque se pode fazer compras em Londres ou Nova York e eles lá vão aos fins de semana ao Retail, Campera ou ao Colombo. Já é mais chic ir ao Cascais Shopping! Ficam fulos porque se come em restaurantes caros, bebe-se bom vinho, fuma-se um havano e eles fazem uns pic-nics nos Burger King ou Pizza Hut. Chateiam-se porque se faz todo o terreno no deserto do Sara, mesmo no Tibete, Chile e eles fazem TT nos jeeps do estado pelos caminhos de Portugal. Às vezes vão a Tânger ou Algeciras! Esperneiam porque se vê o Moto GP de Portugal no padock e eles na bancada E.
Esbracejam porque se anda em carros da gama média/alta e eles vão pagando a prestação do mini ou medi. Ficam encarnados de ódio porque se veste umas roupas de marca e eles vestem-se no Gipsy Mode ou Ricardo's Cigano. É lindo quando vão à feira de Carcavelos ou à Zara! E por aí fora.
Mas ficam para morrer quando alguns burgueses são socialistas, vermelhos (que não encarnados) e também são solidários, cúmplices com a Paz, a Justiça e a Fraternidade. Como eles são possuidos e ficam com convulsões tónicas e clónicas. Por vezes parecem estar a ter ataques. Sim porque eles só têm ataques e de histeria, porque não têm categoria para terem ataques de epilepsia. Mesmo de inveja.
Meus amigos a ideia de socialismo e pobreza já era. Talvez tivesse terminado com a queda do muro de Berlim. Mas como eles andam à velocidade do vapor ainda não estão nos Tempos Modernos. E assim vão morrer e serem enterrados. A cremação é para os ditos burgueses. E quanto mais os conheço, aos ditos democratas, civilizados e anti qualquer coisa, mais gosto dos Vampiros, mesmo e sempre os do Zeca, e os do Adriano, e do António Variações, e da Brigada Victor Jara, e do Rui Mingas, e do Carlos Lamartine, e do Teta Lágrimas, e do Paulo Flores, e do Xico Buarque, e do Pablo Milanez, e de tantos outros.
Estes são burgueses, malteses e às vezes, muitas vezes, incomodam muita gente acomodada.

SEXOS

Estou aqui para dizer que o amor é masculino mas a paixão feminina, o beijo masculino mas a carícia feminina, o peito e o abdómen são masculinos mas as mãos que amam e a cabeça que pensa femininas. A verdade, a razão, a solidariedade, a paz, a cumplicidade, a poesia, a saudade, a onda, a brisa, a terra, são femininas. E é por isso que eu amo.

2005-03-06

ACORDEI E VI

Acordei e vi Lisboa mais triste que a tristeza, mais cansada que o cansaço, mais chorona que o choro, mais fadista que o fado, mais rio que mar, mais livre que liberdade. Acordei e vi Lisboa. Não me perguntes se entrei nas patuscadas do amor de uma Lisboa que ama, noite após noite, mas que ama de uma forma mais amada que as amantes de outras paragens. E vejo o rio a correr a abraçar o mar, o mar que corre para o chamamento da terra, lá longe onde o calor é mais quente, o soprar do vento mais sopro canção, mais festa que farra, mais azul que mar. Entro no Sr. Vinho e oiço a música de uma guitarra que diz poesia, de uma voz de mulher que canta saudade, e abro o meu coração para receber um tinto Vale de Lobos. Um tinto ribatejano que tem a força de vida de quem quer vencer a tristeza, a desgraça, o destino. E penso como seria bom estar com eles, os amigos.
Acordei e vi Lisboa a abraçar o mar e a esquecer o rio.

2005-03-02

VIAGENS

Que bom chegar ao meu porto de abrigo e saber que às 11 horas do dia 3 de Março começa nova vida. Às vezes gostava de ter poderes sobrenaturais e chegar ao Roque Santeiro, ter poderes de mágico (saravá meu amigo Luis de Matos) e fazer poções, botar feitiços nos gargalos das garrafas de beber marufo, e diluir as bebedeiras de felicidade por todos aqueles que amo. Que bom estar neste porto de abrigo e ter na esplanada amigos que falam a mesma lingua e a mesma linguagem. Cumplicidades de quem está a navegar num mar distante e tão perto e rasgar as ondas com a Magia de querer estar, e querer ficar, e querer. E assim sei que não sou navegador solitário a fazer a minha viagem de circum-navegação e que quer parar no estreito de Magalhães para conversar com o Luis Sepúlveda. Mas sei que o meu navio de sonhos está repleto de gente que quer ser e é feliz. Mesmo com lágrimas.

DESPEDIDA

A vida tem tristezas mil, que se desfazem na história de outras vidas, como as ondas do meu mar se desfazem na areia da minha praia. Sento-me na tua esplanada e apetece-me rebentar com o mundo, com aqueles que dizem que o sofrimento nos dá a suprema felicidade. Pura ignorância que Mar Adentro nos faz ser mais racionais e gostarmos mais da vida vivida em qualidade. Nunca tinha vivido a despedida de quem sente a morte como companheira. Jovem atleta, futebolista, pescador, corpo lavrado pelo sal das ondas que lhe roubaram pai e irmãos. Sorriso sempre aberto, solidário para os que sofrem dia a dia as marcas de quem nasceu diferente, vida feita na ajuda das cumplicidades de quem sonha, agarrando o futuro com as mãos que amam o universo. Um dia o destino pregou-lhe a partida e colocaram-lhe o selo de doença incurável. Corpo aberto, fígado dilacerado por bisturi perfeito, as entranhas de um corpo jovem revistado por mãos com nome de santo. O das castanhas e do vinho, Martinho. Hoje o Quim fazia anos e sabia que o outro, o que lhe traçou o destino também estava de festa. A prenda, trazida pela TAC de rotina, não lhe mudou a cor pálida do seu corpo distante, seco, pardacento, o sorriso de amigo, o agradecimento a quem gosta dele. Despediu-se com um beijo do seu médico, eu que até tenho o título de família, e do enfermeiro que o trata como se fosse o cálice da sua ressureição. Assim não vale, mermão. A minha festa ficou mais silenciada e eu mais só neste mar adentro dos dias vividos à procura das soluções. Até já, mermão, meu amigo. Quim, um dia vou-te visitar.