Tabanka do Huambo

Saber compartilhar cumplicidades, na vida, como forma de cultura e de ciência. Cumplicidades de vivências com os amigos numa abordagem vital para a sobrevivência do Planeta Terra.

Nome:
Localização: Coimbra, Portugal

Nascido no Huambo, em Angola. Médico de Medicina Geral e Familiar pela Faculdade de Medicina em Coimbra. Médico na Lousã.

2005-10-28

RUMO CERTO

Estou sentado no muro que me separa deste rio e da prata que a lua do sul desenha ao longo das águas calmas. Olho para longe e sinto que do outro lado da margem alguém escreve poemas de amor à sua eterna namorada. Não consigo sentir as emoções de quem ama com aquele amor contido de anos, sofrido de longe e nunca esquecido. Não sei se o Rio da Prata vai acabar por abraçar o mar que leva toda a minha saudade até ao porto da minha infância. Pelo sim pelo não faço um barco de papel, escrevo nele um nome, coloco-o devagar nas águas prateadas e reluzentes da noite clara e sossego pois ele toma o rumo desejado. Sorvo mais um gole da loira fresca, suave, que me alimenta os sonhos de criança. Gostei de brincar com as imagens que estavam na tela do presente e que me diziam que, do outro lado de lá do rio e do mar, aqui no sul, estão os amigos que também gostariam de ficar aqui ao meu lado. Hoje na Noite do 10 até parece que aquele Dieguito falava de nós e sorria como se fosse o kandengue mais felino à procura de acabar com o longe e a distância.

2005-10-26

JUAN...

Buenos Aires, Outubro de 2005

Juan era um puto porteño, à procura dos sonhos, das pequenas estórias que o pai não lhe contou porque nunca o conheceu. Foi fuzilado numa noite terrível após ter sido preso na Praça de Maio. Hoje, Juan procura com o olhar o vôo da pomba para saber novas do pai.

2005-10-25

UMA FOTO EM BUENOS AIRES

Juan era um miúdo, talvez dos seus nove anos, que vagueava pelas ruas de Buenos Aires. O raio do puto tinha uns olhos com pinta, azuis da cor do céu, cabelo pouco penteado mas com uns caracóis lindos de morrer, passo largo à procura sabe-se lá do quê, um sorriso prateado com o rio da sua cidade, o Rio da Prata. Juan começava o dia a percorrer as ruas da capital da Argentina ainda a noite não tinha terminado. Vestido com a camiseta do Boca, como o seu herói Dieguito Maradona, iniciava a viagem pela Avenida Santa Fé, olhava para os livros da montra do Ateneu tentando perceber o que estava escrito nos livros, a escola já era, avançava pela 9 de Julho onde, no Teatro Cólon, assobiava uma ópera que ouvira há bué de tempo no rádio do avô, percorria, para cima e para baixo, a Florida onde sonhava um dia vestir fato e gravata como os senhores ricos, sonhava com as viagens que nunca faria olhando as novidades anunciadas na Avenida Córdoba e chegava à Praça de Maio já o sol sorria de contente por ver que o miúdo nunca se esquecia de dar as boas vindas a mais um dia. Era aqui que a troco de uma moeda conseguida nas viagens que fazia no metro da cidade, comprava um pacote de milho e ria de felicidade quando os pombos da praça poisavam na sua cabeça e nos seus braços e cantavam uma canção de amor só para ele. E comiam, grão a grão, o milho comprado com o sacrifício de mais uma viagem.
Naquele dia fui encontrar o Juan, na Praça de Maio, a chorar como choram quase todas as crianças. Naquela praça onde um dia a mãe tinha chorado o desaparecimento do pai levado pela polícia da ditadura numa noite fria e tormentosa, naquela noite onde desapareceram muitos jovens só porque tiveram a coragem de dizer não. Naquela Praça onde, ainda hoje, muitas mães procuram justiça e exigem que lhes entreguem os maridos e os sonhos. Juan chorava a moeda que se tinha escapado pela ranhura de uma grade semeada no meio da sua praça por onde se esgueiravam as lágrimas mais sentidas porque naquele dia os pombos não vinham dançar, à sua volta, o tango de Carlos Gardel que mais adorava, Argentina Mi Amor. Sentei-me cansado e desolado naquele banco em frente à Casa Rosada olhando a varanda onde um dia Madona cantou a canção com que Evita Perón encantou os argentinos e o mundo, "Don't Cry For Me, Argentina". E pedi ao Juan para lhe tirar uma foto, naquela tarde em que a sua moeda resolveu viajar ao centro da terra.

2005-10-13

VIDAS NOVAS, VELHOS COSTUMES

De vez em quando sentimos necessidade de visitar outros mundos, outras culturas, estar com outros povos e sentirmos saudade de falar mal do dia a dia que, apesar da resmunguice, gostamos de viver ou somos obrigados a viver. Constitui terapêutica anti depressiva, deformação profissional por certo, para quem tem o hábito de se indignar e reivindicar um Portugal melhor.
Acordamos e deitamo-nos a ouvir falar da presença da GNR no Iraque, dos escândalos do futebol, da pedofilia na Casa Pia, do aumento quase diário dos combustíveis, da presença dos altos signatários da Nação numa qualquer final do europeu de futebol de clubes, no cancelamento da visita do nosso Primeiro-ministro ao México para ir a um jogo de futebol à Alemanha, dos negócios pouco claros na privatização de sectores importantes da economia portuguesa, do desemprego a aumentar, do trabalho precário, da política mais retrógrada e neo-liberal de um ministro que se diz da Solidariedade Social, da diminuição do poder de compra dos portugueses, da paixão pela educação por parte de um ministro incompetente e pouco conhecedor dos problemas das escolas, do anedotário nacional que constituiu a colocação dos professores para 2005, da crise no sector da saúde, do fiasco que constituiu e que levou à criação dos hospitais empresa, da falta e no envelhecimento dos médicos de família, da sinistralidade nas estradas do país, do aumento da “caça à multa” para combater a sinistralidade rodoviária, da falta de infra-estruturas circundantes aos estádios para o Europeu de futebol 2004, de um governo que nos desgoverna, de um País que se lança para a pior crise após a revolução do 25 de Abril (morra a evolução, morra quem teve a ideia, pim!).
E da Lousã, nem em sonhos consigo ter uma imagem positiva. O calvário da estrada da Beira, a variante a Foz de Arouce, a estrada 342, o metro, o novo Centro de Saúde, a despoluição das ribeiras e rios, o tratamento dos resíduos urbanos sólidos e líquidos, o parque desportivo, as zonas de lazer, o repavimento das estradas municipais, o parque industrial, o agrupamentos de escolas, a construção de novas instalações escolares, a reabilitação da Serra da Lousã, são novas que não são comparáveis às notícias da guerra total e mortal entre o Dudu e o Lulu (reis da droga) na favela da Rocinha do Rio de Janeiro.
Isso não significa estarmos em coma profundo e não nos revoltarmos com as imagens dos maus-tratos dos soldados americanos a prisioneiros iraquianos ou à decapitação de um civil americano por um bando terrorista árabe. Ou ao problema palestiniano que a comunidade internacional teima em não resolver.
Como terapêutica proponho beberem um copo de vinho no café Tortoni em Buenos Aires ou uma cerveja no Sindicato do Choupinho no Rio de Janeiro, ver dançar e ouvir um tango no El Comparsita ou um samba no Garota de Ipanema e falar com o povo maravilhoso destes dois países sul-americanos. Assim os portugueses fossem europeus e com o mesmo poder de compra. E sabendo que a sul do equador não existe pecado, acordemos dos sonhos, voltemos à realidade e continuemos a indignarmo-nos e a reivindicarmos nova vida e novos valores.

2005-10-10

FESTA MINHA

Andei por fora, não do mundo nem do pensamento. Esse estava lá. Pensamento, corpo e alma. Que me importa se só agora cheguei e toda a gente foi embora. Não queria guerra, só a paz. Não queria sofrimento. Só a festa. Chi, menino, tanto barulho na rua, só buzinas, bandeiras, cachecóis, música, risos e lágrimas. Como é que se chama mesmo ele? A nossa vitória, ainda cara de kandengue, já maduro e a oferecer a alegria ao seu Presidente, qual é o nome dela? Vamos fazer estátua no bairro mais pobre da capital, sim porque os nossos heróis merecem estátua. Todos foram mágicos naquele dia mágico, mas o mais mágico foi o capitão. Menino coragem, tímido, sincero, com ar terno, sofrido como o seu povo, capitão dos mágicos e que alegrou um povo, uma nação. Akwá eu sabia que isto ía acontecer. E vou-te dizer, embora longe, quero-te dizer. Estou contigo e sei que Angola continua linda. Gostava de passar pela marginal e beber uma e mais uma até ver o zulmarinho da minha ilha me saudar. Te digo, o povo vai sair à rua. E eu vou com eles. Até à Alemanha. E deixa-me dizer-te só mais uma coisa. Angola não é só fome e miséria.

2005-10-04

A NOITE SEM MULHERES

Ele olhava o espelho, se calhar, pela última vez antes de sair para a noite. Ainda tinha um aroma a fresco. A água do banho tinha-o limpo de toda a sujidade, após um dia de tanto trabalho. Por fora e por dentro. Agora olhava, mais uma vez para si próprio, naquele espelho e parecia um pouco mais velho. Não se importou. Esta noite ía estar livre. Sem as suas mulheres. Umas a frequentar o Erasmus, num país bem longe. Sim, porque na Europa também há longes. A outra, com quem vivia há um quarto de século, por afazeres profissionais, estava fora da cidade. Tinha esta noite só para si. Colocou as mãos em concha, despejou uma grande quantidade de água de colónia e perfumou o corpo. Agora parecia estar pronto. Toca o telefone, estava quase na rua, e dilema dos dilemas. Resolveu atender, porque sentiu um aperto no peito. A mãe dáva-lhe a notícia de que o pai estava mal. Não muito velho mas doente, o seu kota tinha caído. Uma rotura muscular a nível da coxa não o tirava do tapete da sala, impossibilitado de andar. Chega apressado, esbaforido como lhe disseram, desabafa com a mãe que esta era a sua noite. Há muitos anos, que estava sem as suas mulheres e logo hoje que a noite estava por conta dele, o velho resolveu dar fim ao sonho da noite sem mulheres. O pai pede-lhe, por tudo quanto é mais sagrado, que não quer humilhação. Nada de ambulâncias, nem de choros. Só os dois na noite. Coloca o pai às costas. Não era muito pesado mas como era mais alto o carregamento torna-se incómodo. E são três andares! Já no meio das escadas, só os dois, o kota beija o filho e sussurra-lhe, de mansinho:
- Temos esta noite só para nós os dois. Sem as nossas mulheres!
Não sei como foi a noite, no hospital. Sei que sofreu uma intervenção cirúrgica àquele maldito músculo que tinha que romper naquela noite. A noite que ía ser sem mulheres. Mas hoje o filho chora, sem lágrimas, o pai que agora parece sorrir para ele dizendo-lhe, deitado naquele caixão:
- Porque viestes com as nossas mulheres?