AUTÓPSIA
Abri o meu coração, a minha capacidade de pensar, de estar em permanante discordância com as atitutes e as normas de orientação impostas por uma sociedade que não é de verdade. Assim fico preso à imagem que sempre me derrotou a alegria, quando nas aulas de Medicina Legal e com o bisturi rasgava um corpo gélido colocado na banca dos retalhos. Tudo me era frio e sem sentido. Abria-se o peito e o abdómen de um desconhecido, com cortes perfeitos, e acabávamos por encontrar sempre as mesmas coisas, os mesmos órgãos. Onde estavam as emoções, as sensações, as paixões, as almas, o "fogo que arde sem se ver"? Onde? Ou seríam os sinais do enfarte que culminavam com a chamada para a causa de morte? Nunca o saberei. Como nunca encontrei o pensamento, o raciocínio, a racionalidade, a atitute, quando com a serra eléctrica separava a calote do crâneo. Imaginava os escalpes e via filmes sem sentido. Ainda hoje não me libertei das imagens frias e gélidas da morte e desobedeço, quase sempre, quando sou chamado a verificar o fim da vida.
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