Tabanka do Huambo

Saber compartilhar cumplicidades, na vida, como forma de cultura e de ciência. Cumplicidades de vivências com os amigos numa abordagem vital para a sobrevivência do Planeta Terra.

Nome:
Localização: Coimbra, Portugal

Nascido no Huambo, em Angola. Médico de Medicina Geral e Familiar pela Faculdade de Medicina em Coimbra. Médico na Lousã.

2005-10-04

A NOITE SEM MULHERES

Ele olhava o espelho, se calhar, pela última vez antes de sair para a noite. Ainda tinha um aroma a fresco. A água do banho tinha-o limpo de toda a sujidade, após um dia de tanto trabalho. Por fora e por dentro. Agora olhava, mais uma vez para si próprio, naquele espelho e parecia um pouco mais velho. Não se importou. Esta noite ía estar livre. Sem as suas mulheres. Umas a frequentar o Erasmus, num país bem longe. Sim, porque na Europa também há longes. A outra, com quem vivia há um quarto de século, por afazeres profissionais, estava fora da cidade. Tinha esta noite só para si. Colocou as mãos em concha, despejou uma grande quantidade de água de colónia e perfumou o corpo. Agora parecia estar pronto. Toca o telefone, estava quase na rua, e dilema dos dilemas. Resolveu atender, porque sentiu um aperto no peito. A mãe dáva-lhe a notícia de que o pai estava mal. Não muito velho mas doente, o seu kota tinha caído. Uma rotura muscular a nível da coxa não o tirava do tapete da sala, impossibilitado de andar. Chega apressado, esbaforido como lhe disseram, desabafa com a mãe que esta era a sua noite. Há muitos anos, que estava sem as suas mulheres e logo hoje que a noite estava por conta dele, o velho resolveu dar fim ao sonho da noite sem mulheres. O pai pede-lhe, por tudo quanto é mais sagrado, que não quer humilhação. Nada de ambulâncias, nem de choros. Só os dois na noite. Coloca o pai às costas. Não era muito pesado mas como era mais alto o carregamento torna-se incómodo. E são três andares! Já no meio das escadas, só os dois, o kota beija o filho e sussurra-lhe, de mansinho:
- Temos esta noite só para nós os dois. Sem as nossas mulheres!
Não sei como foi a noite, no hospital. Sei que sofreu uma intervenção cirúrgica àquele maldito músculo que tinha que romper naquela noite. A noite que ía ser sem mulheres. Mas hoje o filho chora, sem lágrimas, o pai que agora parece sorrir para ele dizendo-lhe, deitado naquele caixão:
- Porque viestes com as nossas mulheres?