Tabanka do Huambo

Saber compartilhar cumplicidades, na vida, como forma de cultura e de ciência. Cumplicidades de vivências com os amigos numa abordagem vital para a sobrevivência do Planeta Terra.

Nome:
Localização: Coimbra, Portugal

Nascido no Huambo, em Angola. Médico de Medicina Geral e Familiar pela Faculdade de Medicina em Coimbra. Médico na Lousã.

2005-10-25

UMA FOTO EM BUENOS AIRES

Juan era um miúdo, talvez dos seus nove anos, que vagueava pelas ruas de Buenos Aires. O raio do puto tinha uns olhos com pinta, azuis da cor do céu, cabelo pouco penteado mas com uns caracóis lindos de morrer, passo largo à procura sabe-se lá do quê, um sorriso prateado com o rio da sua cidade, o Rio da Prata. Juan começava o dia a percorrer as ruas da capital da Argentina ainda a noite não tinha terminado. Vestido com a camiseta do Boca, como o seu herói Dieguito Maradona, iniciava a viagem pela Avenida Santa Fé, olhava para os livros da montra do Ateneu tentando perceber o que estava escrito nos livros, a escola já era, avançava pela 9 de Julho onde, no Teatro Cólon, assobiava uma ópera que ouvira há bué de tempo no rádio do avô, percorria, para cima e para baixo, a Florida onde sonhava um dia vestir fato e gravata como os senhores ricos, sonhava com as viagens que nunca faria olhando as novidades anunciadas na Avenida Córdoba e chegava à Praça de Maio já o sol sorria de contente por ver que o miúdo nunca se esquecia de dar as boas vindas a mais um dia. Era aqui que a troco de uma moeda conseguida nas viagens que fazia no metro da cidade, comprava um pacote de milho e ria de felicidade quando os pombos da praça poisavam na sua cabeça e nos seus braços e cantavam uma canção de amor só para ele. E comiam, grão a grão, o milho comprado com o sacrifício de mais uma viagem.
Naquele dia fui encontrar o Juan, na Praça de Maio, a chorar como choram quase todas as crianças. Naquela praça onde um dia a mãe tinha chorado o desaparecimento do pai levado pela polícia da ditadura numa noite fria e tormentosa, naquela noite onde desapareceram muitos jovens só porque tiveram a coragem de dizer não. Naquela Praça onde, ainda hoje, muitas mães procuram justiça e exigem que lhes entreguem os maridos e os sonhos. Juan chorava a moeda que se tinha escapado pela ranhura de uma grade semeada no meio da sua praça por onde se esgueiravam as lágrimas mais sentidas porque naquele dia os pombos não vinham dançar, à sua volta, o tango de Carlos Gardel que mais adorava, Argentina Mi Amor. Sentei-me cansado e desolado naquele banco em frente à Casa Rosada olhando a varanda onde um dia Madona cantou a canção com que Evita Perón encantou os argentinos e o mundo, "Don't Cry For Me, Argentina". E pedi ao Juan para lhe tirar uma foto, naquela tarde em que a sua moeda resolveu viajar ao centro da terra.