Tabanka do Huambo

Saber compartilhar cumplicidades, na vida, como forma de cultura e de ciência. Cumplicidades de vivências com os amigos numa abordagem vital para a sobrevivência do Planeta Terra.

Nome:
Localização: Coimbra, Portugal

Nascido no Huambo, em Angola. Médico de Medicina Geral e Familiar pela Faculdade de Medicina em Coimbra. Médico na Lousã.

2005-02-01

JOAQUIM FUMAÇA

Nas longas serras, entre a Estrela e a Lousã, estendem-se harmoniosos os caminhos tranquilos das estradas escravas. Os olhos dos homens humildes adormecem em temores vagos de um tempo de impaciência.
Joaquim Fumaça, 91 anos de idade, seco de músculos, corpo lavrado pelo sol pleno, a respirar, pouco a pouco, o ar envenenado pela vida, sentou-se, pela primeira vez, em frente do senhor doutor, curvado pelos abismos imensos que a doença provoca. Homem de muitas palavras, movimentos, sangue, nervos e vontade, não teve tempo de ir à escola. Calcorreou os caminhos entre Santo António das Neves e a Pampilhosa da Serra fazendo e vendendo carvão. Numa noite, quando o orvalho se perdeu, a neve não existia, os seus olhos viraram estrelas, colibris feitos poesia, escondeu os fantasmas da fome, do frio, da sede, e fez-se à distância. Nessa noite no cortejo das estrelas, lua gotejando procuras, Joaquim Fumaça, caminhou pela triste imensidade da solidão, rolou no espaço intérmino, e rumou a Lisboa.
Triste por deixar a sua flor de pétalas de ternuras, chegou à miragem que se chama mar. A guerra com estrondo fazia chegar os sons do medo. Medo onde, em cada esquina, os sentinelas vigilantes incendiavam olhares, prendiam desejos de liberdade, substituiam consciências desesperadas, transformavam a vida em guiões de desespero e em gritos de morte.
O pó do carvão, do trigo, do centeio, do milho, do cimento, em trânsito por Lisboa, trazidos de África para a Alemanha nazi, escureceu-lhe o respirar, a força escondeu-se nos silêncios da doença, as palavras quebraram-se com a tosse do pó, dos cigarros, do álcool, das mulheres. Regressou à sua terra onde não mais sentiu o cheiro da seiva dos pinheiros.
E hoje, numa manhã de Fevereiro, na minha frente, punhos cerrados, veias endurecidas, olhar risonho, respiração maralhada de espasmos, ainda me fala de liberdade, fraternidade, igualdade. Recorda as camionetas fazendo fila entre Santa Apolónia e o Terreiro do Paço e que já não turvam de sangue, suor e lágrimas as águas do seu Tejo, como nos idos tempos de 1945. Com elegância, ainda me faz poesia, dizendo-me que "nunca mais da guerra nos livramos, mas a fome já matamos ".
Ti Jaquim Fumaça, pediu para se deitar, fechou os olhos, entrou numa plúmbea tristeza, iniciou a sua viagem sem regresso, subindo vagarosamente a serra, silenciando a terra adusta. Uma insondável mágoa percorreu o meu rosto enquanto ao longe as nuvens álgidas se escondiam no horizonte das montanhas geladas.