Tabanka do Huambo

Saber compartilhar cumplicidades, na vida, como forma de cultura e de ciência. Cumplicidades de vivências com os amigos numa abordagem vital para a sobrevivência do Planeta Terra.

Nome:
Localização: Coimbra, Portugal

Nascido no Huambo, em Angola. Médico de Medicina Geral e Familiar pela Faculdade de Medicina em Coimbra. Médico na Lousã.

2005-02-14

14 DE FEVEREIRO

Hoje é o dia em que se requer fartura no coração. Olhando no horizonte, abro o olhar de felicidade pela minha namorada, vejo o seu sorriso perder-se num momento na montanha onde o nosso amor se aninha. Ali fico toda a manhã olhando, na pausa da minha viagem, os beirais do meu refúgio. A minha alma cobra o meu sossego. Fico, parado, olhando distâncias, vendo as andorinhas do Sul chegar, alegres, esvoaçando rápidas, cantando canções de amar.
Não percebo se as andorinhas traziam as tuas notícias, as notícias do meu planalto. Fui acordado, com estrondo, do sonho da minha infância, de buganvílias e jacarandás. Quebrado o meu silêncio, dona Esmeraldina, vestida de preto como as andorinhas, caminhando vagarosa como o seu tempo, pediu interrupções.
- O senhor doutor dá licença?
Esperava ninguém, muito menos aquela alma que, todos os dias, calcorreava caminhos e estradas, percorrendo os lugares que desfilavam pelas linhas da sua tranquilidade, dos vales e serras verdes de Vale Maceira e Lousã. Uns quatro mil metros percorridos para vir anunciar as suas queixas iguais de anos. Inutilmente pergunto qualquer coisa e balbuciei um entre pouco convicto. Remava, devagaroso, entre o tempo de espera e o de chegar ao fim. A dona ía insistir nas queixas, quando lhe propus um silêncio e antecipei a resolução do problema.
- Tschhhhhhhhhhhhhhhhhhhh !!!, sussurrei.
- Ó senhor doutor, então não é que vocemecê me parece as camionetas da minha infância quando chegaram a Vale Maceira !
- Mas o que é que isso tem que ver com o que a trouxe até cá ?
- Doutor, há muito tempo, em Vale Maceira a gente vivia do que a terra dava. Tempos difíceis. Criávamos, também, umas galinhas para enganarmos a fome quando elas estavam prontas. Galinhas que andavam à solta pelos campos, pelas ruas, depenicando o que encontravam. Um dia começaram a haver carros na aldeia e tivemos que guardar as galinhas para não morrerem atropeladas. Mas o que mais nos surprendeu foi quando chegou, pela primeira vez, a camioneta da carreira. Julgávamos que as galinhas íam morrer todas. Mas raio de vida, as camionetas quando paravam faziam tschhhhhhhhhh, como fez há pouco o doutor, e as galinhas fugiam, cada uma para seu lado.
- Ó mulher isso era o compressor dos travões do autocarro que quando travava fazia esse barulho , retorqui.
- Era, era senhor doutor. Nã! Ó louvado seja Deus! Então não está a ver? Eu e as minhas amigas pensávamos que era o fim do mundo, pois até as camionetas tinham espanta galinhas .
D. Esmeraldina colocou o seu lenço na cabeça, o xaile pelos ombros, negros como as asas das andorinhas, arribou do consultório e lá foi com a cura dos desenganos, olhos poeirados, descalços, como se soubesse bem a visita que me fez naquele dia. Olhei pela janela e até as andorinhas estavam de espanto, esperando a chegada da Primavera. O tschhh deste dia não me conseguiu estilhaçar o vidro da memória. Aguardo uma carta de longe.