MORTE NA SERRA
Naquela noite nunca se soube se fazia frio, se estava a erva húmida, se havia estrelas, se a noite era negra como a morte anunciada. O que se soube é que ele estava lá, ali sentado num bocado de madeira daquela árvore que sabe muitas estórias, bem lá no alto da serra, olhando o vazio. Nunca se saberá se ele conseguiu ver, pela última vez, as luzes da vila que, como pirilampos, iluminavam o presente por entre os ramos dos pinheiros, das acácias, do arvoredo que servia de refúgio ao passado. No final da noite enrolou um charro do produto trazido do Norte de África e deu umas duas ou três passas. Encheu o peito de fumo, bem forte e tossiu. O fumo depois perdeu-se na noite e os sonhos de uma vida que queria serena começaram a desvanecer-se.
Tinha saído da Alemanha há uns anos. Três ou quatro. Trabalhou, depois da licenciatura, numa empresa. Nunca conheceu os colegas. Na universidade e na empresa. Maquinava o trabalho como quase todos faziam, não fazia perguntas, não questionava, não reivindicava. Trabalhava. E esperava o fim do dia. O casamento durou pouco tempo. Quase nenhum. O tempo da paixão. O tempo de não conseguir deixar filhos. Um dia adoeceu, conseguiu uma reforma por doença e decidiu fugir. De tudo e todos. Como nesta noite sentado no bocado de madeira. Fugiu para bem longe e para bem perto do mar onde, com gente nova, podesse perguntar, questionar, reivindicar. Falar e ouvir. E resolveu, chegado onde acabava a Europa, refazer a vida. Em comunhão com a natureza, como gostava de dizer. Como o pai que tinha sido um hippie, um lutador contra a guerra do Vietnam. Um dia amarrou-se ao muro de Berlim e gritou liberdade. Foi lutador do amor livre. Por chauvinismo foi contra o Maio de 68.
Vivia há três anos na serra. Comendo o que cultivava, guardando gado, fumando umas ganzas, deixou crescer o cabelo e a barba, tomava banho no rio, a casa era de xisto que não tinha água, luz e aquecimento. Uma verdadeira comunhão com o mundo. Por vezes vinha à vila para matar saudades. Enamorou-se por uma belga de quem teve três filhos. Uma média fantástica em três anos. O amor fazia-se livre e as crianças eram os sorrisos na aldeia. Pareciam bando de pardais à solta, como diz o cantor.
O ucraniano, chegado há pouco à aldeia serrana, fez logo amizades. Principalmente com ele. Sorriso aberto, espírito inovador, bom trabalhador. Às vezes era criticado por cometer uns excessos. Não aproveitava o que deus lhe dava, dando lugar ao que o homem transformava. Bebia vodka e fumava opiáceos. Naquela noite, já madrugada, o ucraniano sentiu um frio gelado percorrer-lhe o corpo. Quase a atingir o limite do álcool e a navegar numa onda má da coca, o olhar ficou cheio de raiva. O seu amigo alemão tinha feito amor com a amiga Julie, a mulher dos seus sonhos. Foi então que não se sabe explicar o que aconteceu. Inexplicável. Aspirou a cocaína até ao limite, pegou na catana e desferiu os golpes de morte até à exaustão. Wolfgan caiu morto. De seguida foi-se deitar.
Acordou já acorrentado, numa confusão de ruidos e vozes que não conhecia. Reparou que o pequeno amuleto, oferecido pela Julie, já não fazia parte do colar do pescoço. O ar que respirava era abafado e húmido. Cheio de odores fortes. Percorreu, com indiferença, o caminho que o levou até ao carro da judiciária. Não tinha nenhum motivo para olhar o passado. Por isso não viu o amuleto baloiçar no ramo da árvore que servia de abrigo ao cadáver despedaçado de Wolfgan. Quase atingiu um estado convulsivo quando abriu os olhos e estes foram atingidos pelas luzes azuis da sirene do carro policial a viajar a alta velocidade. Como na noite anterior enquanto desferia os golpes de morte, a alta velocidade.
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