Tabanka do Huambo

Saber compartilhar cumplicidades, na vida, como forma de cultura e de ciência. Cumplicidades de vivências com os amigos numa abordagem vital para a sobrevivência do Planeta Terra.

Nome:
Localização: Coimbra, Portugal

Nascido no Huambo, em Angola. Médico de Medicina Geral e Familiar pela Faculdade de Medicina em Coimbra. Médico na Lousã.

2006-03-06

AVENIDA NEVSKY


O vestido branco colava-se ao corpo. O vento gelado de Março modelava-lhe a beleza realçada por uns traços que muitos pensavam não ser possível. Houve quem dissesse que ela parecia a estátua “Domação do Cavalo Selvagem”, moldada e fundida por Pyotr Klodt. Poesia escrita com as gotas de gelo trazidas pelo vento do Báltico, anunciando um tempo que não convidava ao sonho, digo eu ao olhar para os seus olhos negros rasgados por uma sombra provocante desenhada essa manhã. Contudo não chovia pois, como mil vezes afirmavam os pescadores da Nazaré, enquanto fizesse vento a chuva não se fazia notar. Quem mo disse foi ela na noite anterior, junto ao rio Neva na Ponte Anichkov, enquanto trocámos cumplicidades e desejos, pois em pequena tinha por hábito passar férias vendo os pescadores lavrar a areia da praia com as redes carregadas do sustento tirado do mar. E como gostava das histórias contadas ao fim da tarde sentindo o salpico das ondas que lhe humedeciam os olhos, por vezes misturando-se com as lágrimas da sua tristeza.
Nesse dia, na Avenida Nevsky, a famosa Nevsky Prospekt, cansada, caminhava indiferente ao ruído e às vagas de gente, gente do mundo que corria de cá para lá e de lá para cá, à procura sabe-se lá do quê. Talvez à procura de uma felicidade perdida. Gogol dizia que tudo é falso nesta avenida, pois por aí passeiam-se as grandezas e as misérias de nobres e burgueses. Talvez tivesse razão. Mas São Petersburgo é isso mesmo. Grandezas e misérias de gente que não sabe agarrar os encantos sagrados que a cidade lhes proporciona.
Tinha passado a manhã numa esquadra da polícia onde tudo era feito e pensado com uma calma irritante. O russo não é uma língua fácil para se estabelecer um diálogo e foi preciso esperar pela burocracia de uma intérprete que falava um inglês pouco perceptível para resolver o que a trouxera ali. O roubo na Catedral de Cristo Ressuscitado. Como era bom, pensava, sentada naquele banco de madeira, ter tido a sorte de ler livros de Dostoievsky, Pushkin, Gogol em português e sentir a música de Rimsky-Korsakov e Tchaikosky em russo. Sem intermediários. Apesar de tudo, enquanto lhe tinham dito para esperar, em russo, português, inglês e linguagem gestual, pensou na frieza que é estarmos por fora de uma cultura moldada pelos dias que não têm noites e das noites que não conhecem os dias. Uns dias antes tinha sentido o que era ver um pôr de sol pela madrugada, nos mares do Golfo da Finlândia. O pôr de sol mais autêntico da sua vida. São Petersburgo é mesmo assim. Monumental. Fria. Apaixonante. Talvez naif. Assimétrica socialmente, mas geométrica no traçado de parques e avenidas.
Já cansada, olhou uma última vez para o rio Neva, esqueceu-se, ela também, que Lenine aqui cursou Direito e foi visto, no Campo de Março, junto ao Palácio de Mármore, a falar às massas do cimo de um tanque de guerra. Duplicaram no seu peito as manifestações de revolta e alegria. Entrou no Museu Hermitage alegrando-se com a recompensa fortuita daquela manhã, foi afastando as madeixas do cabelo negro do seu lindo rosto, enquanto o coração se enchia de encantos sagrados. Estes pensamentos lembraram-lhe os versos do poeta Aleksandr Sergeevich Pushkin.
O vento do Báltico continua a soprar gelado mas agora para me dizer que tu ainda me amas e que eu te pertenço. Vislumbro a tua imagem, de novo, vestida de branco.