Tabanka do Huambo

Saber compartilhar cumplicidades, na vida, como forma de cultura e de ciência. Cumplicidades de vivências com os amigos numa abordagem vital para a sobrevivência do Planeta Terra.

Nome:
Localização: Coimbra, Portugal

Nascido no Huambo, em Angola. Médico de Medicina Geral e Familiar pela Faculdade de Medicina em Coimbra. Médico na Lousã.

2006-02-14

OS GRITOS DO TEMPO


Encosto-me às paredes da esperança ouvindo os gritos do tempo. Abro as minhas mãos desertas e deixo passar as sombras da minha vontade. Junto a este muro não me apetece clamar pelas forças de todas as forças. Não me apetece escrever. Não me apetece pensar. Não quero ficar amarrado às vozes dos que ainda condenam o meu amor por ti. Às vezes sofro como os homens que não têm terra, nem caminho, nem destino. Homens que não têm noites de fantasia. Mas sofro, porque quero e sinto que estou longe, muito longe. Mas eu, hoje, não quero mais que uma noite de futuro. E, é por isso que, nos meus sonhos contidos, subo novamente para a minha bicicleta, a ginga, e fujo, percorrendo os caminhos da minha infância. Vou pela estrada de pó, rejeito o alcatrão, corro até ao mercado do Canha, compro a minha ginguba com açucar, e pedalo, vigorosamente, até chegar ao Ferrovia. Kurikutelas, meu amor. Hoje gazetei na escola para jogar à bola, mergulhar na água azul da tua piscina e vou a correr pelo tempo sem tempo. Lembras-te, era o tempo em que os siripipis nos cantavam canções de aventura. No final da tarde, debaixo da mandioqueira, fazíamos os relatos do nosso Benfica, discutíamos as tácticas do Carlos Pinhão escritas n'A Bola, fazíamos planos para as 6 Horas Internacionais do Huambo, e nunca percebemos porque tínhamos de ser mandados pelos de longe, os de Lisboa.
O nosso Huambo tinha mais encanto quando, todos juntos, comíamos o pó do caminho que nos levava para os amores não correspondidos. O nosso Huambo tinha os bairros, o Académico, Benfica, Cacilhas, S. Pedro, Comércio, Fátima, S. João, Caminho de Ferro, que nós aprendemos a compreender e a amar. No meu bairo, o bairo do CFB, todos queríamos ser o Eusébio dos nossos sonhos. Grandes partidas de futebol ali fizemos no campo de terra batida onde as balizas eram as enormes árvores que também aprendemos a subir. Como era lindo, no final de muitas tardes, com companheiros de escola, partirmos à procura dos desejos. Os jogos de bilhar e depois corríamos, como doidos, para a Kambo, o nosso café e do Ernesto Lara Filho, e aí ficávamos, com o coração a bater mais depressa, para vermos passar as miúdas do Liceu, gingando como as estrelas de cinema das nossas matinés no Ruacaná.
Um dia, meu Huambo, meu amor, hei-de voltar a sentar-me contigo à mesa para falarmos das coisas boas com os teus filhos de ontem e de hoje. Vamos esquecer as coisas más. Sei que me vais beijar, perdidamente, com aquele beijo quente e frio das tuas noites de Inverno, como me fazias na minha infância. Vais-me aquecer o corpo com as saudades da tua sagrada esperança. Vais-me desculpar, mas no final do dia, quando o sol se estiver para se deitar, vou sair devagarinho, apanhar o comboio mala e partir sem destino. Quero percorrer o verde ondulado dos capinzais selvagens e ouvir os batuques do meu povo que me enchem o coração de lendas do passado. E o maquinista és tu, meu querido pai.
Encosto-me, ainda mais, às paredes de esperança ouvindo os gritos do tempo.