Tabanka do Huambo

Saber compartilhar cumplicidades, na vida, como forma de cultura e de ciência. Cumplicidades de vivências com os amigos numa abordagem vital para a sobrevivência do Planeta Terra.

Nome:
Localização: Coimbra, Portugal

Nascido no Huambo, em Angola. Médico de Medicina Geral e Familiar pela Faculdade de Medicina em Coimbra. Médico na Lousã.

2005-06-01

ZJZ

Hoje navego lentamente pelas águas repousantes do Nilo, em lentos movimentos. O capitão da feluca, um núbio, cor negra de ébano, músculos construidos pelo trabalho do homem e esculpidos pelo vento e sol deste oriental zulmarinho, vai conversando e contando as histórias de séculos. Anuncio que não falo árabe, ma aqdar atakalam Arabee. Fui aprendendo com o decorrer dos dias a filosofia deste povo. E aprendi que com Emmad Khalifa não se discute. Diz-me com o melhor dos seus sorrisos, "law samaHt, ektobah Ala hateh al-Waraqah". Que em bom português quer dizer "por favor escreve". Foi o que fiz. Comecei a tirar notas do meu caderno de viagem.
A vela triangular da feluca, enfonada pelo vento forte, parece entrecortar o tempo e o murmúrio das gentes que nos acompanham pelas margens do rio. Sinto-me embalado pelo som repousante da água entrecortada pela feluca, em movimentos ritmados. Recordo os poemas e os cantares de Amina Alaoui, uma mulher lindíssima, de corpo e espírito, que me fala da sua cultura e do legado do Al-Andaluz. Um riso lindo, como o despertar de lua mágica, portadora de uma voz e alma ímpar que canta a paz e o Mundo. Marroquina e árabe, escreve as suas canções entre o cantar dos pássaros nas tamareiras dos oásis saharianos.
Começo a vislumbrar a aldeia núbia, para onde me dirijo, com as suas hortas resguardadas por densas fileiras de palmeiras, vielas tortuosas e cheias de inúmeros e exóticos odores. As crianças recebem-me com os seus gritos e risos de alegria. Piso o chão da aldeia e, diante de mim, abre-se uma galeria de fotos, verdadeiro arco-íris do deserto. A aldeia e as suas casas são uma surpreendente explosão de cores e tons, rompendo de maneira dramática o amarelo dominante do deserto. Pinturas em verde, azul, amarelo, vermelho e branco decoram portas e paredes. No interior das casas, imagens figurativas combinam elementos locais com influências islâmicas. Conhecimentos passados de geração em geração. Filosofia arquitectónica que se insere no ambiente e que resiste às influências externas. Sente-se a atmosfera que mistura funcionalidade e respeito e nota-se o coração negro de África. Habitações feitas de barro, com telhados de folhas de palmeira, são compostas de muitos quartos em volta de um pátio fechado, um espaço amplo e limpo, onde se conversa, canta e dança. Aqui as pinturas são mais coloridas, numa desconcertante mistura de cores no universo de padrões geométricos que me recordam as imagens de um caleidoscópio.
Como sempre acontece na cultura africana a arte tem uma função e nas aldeias núbias são um recurso cultural de valor inestimável, como afirma Muhammed Jalaa Hashim, linguista e especialista da cultura núbia. Espaços, formas, objectos, tudo tem uma utilidade práctica. Estas casas são como um livro aberto onde a história da Núbia, com mais de 4 mil anos, não está escrita em manuscritos mas impressa nas paredes, nos pisos decorados e nas portas esculpidas. Um livro vivo de pessoas, cores e paixões. Law samath takalam sheway sheway. Por favor fale devagar, imploro ao dono da casa. Sentados no pátio, bebendo chá de menta, Emmad diz-me que a arte núbia resulta do magnífico equlíbrio entre a aldeia e a natureza, o homem e a terra. É uma relíquia que deve ser perservada.
A região da Núbia estende-se desde Kartum, no Sudão, até ao lago Nasser, no Egipto. Foi aqui que em 2.400 a.C. surgiu o reino de Kush, o primeiro Estado africano, onde viveram os lendários faraós negros. Após a decadência destes faraós, a Núbia tornou-se numa região de agricultores. Segundo Giovanni Vantini, missionário no Sudão, "os núbios são o resultado da união de diversas culturas, da península arábica, Etiópia, e dos nómadas do deserto ocidental, mas que se uniram no vale do Nilo, à população local". Brilhante neste povo é que nada é rigido. A cada nova estação, as mulheres transformam-se em artistas que pintam e constroem nas paredes as estórias e história das suas vidas.
No fim do dia caminho pelas ruelas empoeiradas até à escola local onde a professora nos ensina, como faz todos os dias aos seus meninos, as letras e os números árabes. Volto à minha meninice. Ainda tenho tempo de voltar à casa de Emmad onde alguém me oferece a sua agareb, a cama feita de cordas entrançadas sobre uma moldura de madeira. Diz-me que é para ver o céu mais azul e brincar com as estrelas. Numa noite quente de Março. Só tenho tempo de beber água fresca do zjz, o grande vaso de barro, colocado num canto do pátio, despedir-me da família que me acolheu por um dia e me recordou o orgulho de serem povo, terem história e cultura.
Entro na feluca e regresso à minha solidão, navegando rio abaixo, olhando as estrelas e ouvindo o murmúrio das gentes nas margens do Nilo. E sonho com estrelas distantes e os amores proibidos e perdidos na noite quente da aldeia Núbia.