Tabanka do Huambo

Saber compartilhar cumplicidades, na vida, como forma de cultura e de ciência. Cumplicidades de vivências com os amigos numa abordagem vital para a sobrevivência do Planeta Terra.

Nome:
Localização: Coimbra, Portugal

Nascido no Huambo, em Angola. Médico de Medicina Geral e Familiar pela Faculdade de Medicina em Coimbra. Médico na Lousã.

2006-01-03

TENTAÇÕES

Caminho pela madrugada na solidão das ruas da cidade. Mãos nos bolsos, aquecido pelo polar-teck azul marinho que trago vestido, vou pensando como estão frias estas madrugadas. Quase tropeço no gato preto que se atravessa à minha frente. Corre para o outro lado da rua à procura do eterno caixote do lixo onde sobram os restos de comida dos bares e restaurantes desta cidade que não dorme. Vai depressa. Quer ser o primeiro a chegar. Muito antes das mãos famintas das sombras da noite. Emigrantes. Uns de leste, outros do sul. Desconsigo deixar de pensar como deve ser triste a fria noite daqueles que recusamos a não ver. Continuo a caminhada do fim da noite. Quero chegar cedo à Esplanada, mesmo antes do reboliço das manhãs e saborear o cheiro a café e pão quente. Gosto de receber os bons dias de gente feliz e ficar sentado a olhar o zulmarinho. Procuro, no denso nevoeiro da manhã, o vai e vem dos navios que chegam e partem do cais dos sonhos. O frio aconchega-me a pele à cara e à alma. Parece massagem em salão de beleza e consegue suavizar as dores que sinto nos ossos, músculos, vasos e nervos que constituem a anatomia deste corpo dilacerado pela vontade de partir. Na mesa está o livro, acabado de ler, de António Botto, Canções. Não posso deixar no esquecimento o que li no poema Pequenas Esculturas. Erguem-se vozes. O clamor, a barafunda vai avultando no silêncio da senzala. E o batuque principia. O luar cai muito quente, gorduroso, na areia que escalda…

A esplanada começa a encher-se de gente. Gente sempre com pressa e ávida do prazer da fadiga. Sinto que há muita gente que vem à Esplanada, que mora na minha Sanzala, e que eu tenho a certeza que são a mentira do futuro. Outros olham o horizonte e a contemplar contestam. Outros, apaixonados intervêm. Gosto mais destes últimos. Os contestatários e os apaixonados. Os da mentira, andam nus a saltar na areia da praia e quando procuro olhá-los recusam, amedrontados, fixar os meus olhos. Rio aos desafios frágeis de todas as razões. Mesmo isolado gosto de abraçar os amigos com a minha rebeldia. Embrutecidos pelos tempos dos rumos ultrapassados, os da mentira seguem outros caminhos e nós ficamos, à luz do dia, a amar a verdade, na saudade de tudo. Apetece-me chamar-lhes, atrofiados!

Fixo, agora, o mar e vejo nele os teus olhos onde não há depois. O teu corpo moreno numa dança estética que me enche de curiosidade. A tua sensualidade é como as águas das ribeiras e dos rios. Perdem-se no mar. Como diz o poeta, busco a beleza na forma, e jamais a beleza da intenção, a beleza que perdura. Oiço as quatro tentações de maravilha, canção que me entreabre um sorriso. Peço um café e olho o infinito.