Tabanka do Huambo

Saber compartilhar cumplicidades, na vida, como forma de cultura e de ciência. Cumplicidades de vivências com os amigos numa abordagem vital para a sobrevivência do Planeta Terra.

Nome:
Localização: Coimbra, Portugal

Nascido no Huambo, em Angola. Médico de Medicina Geral e Familiar pela Faculdade de Medicina em Coimbra. Médico na Lousã.

2005-01-02

DAVID BERNARDINO - Pioneiro dos Cuidados Primários em Angola

O comboio de casas alinhadas como colmeias, paralela às oficinas do Caminho de Ferro de Benguela - CFB, anuncia-nos o bairro do Caminho de Ferro no Huambo, Angola. Amarelas, rodeadas por lindas bungavílias eram entrecortadas pelo " triângulo " onde nós os cadengues, putos, alguns requilas, vínhamos apanhar boleia das máquinas a vapor, enormes (chamavam-se Garrads, havia ainda as Montanhas e as Nonas), para o outo lado da estação. Do outro lado da linha o cinema Ruacaná e a pastelaria Kambo eram o ponto de encontro dos fins de tarde onde nos deliciávamos com as conversas e as brincadeiras próprias de quem amava a sua cidade. O "Tau Tau", Ernesto Lara Filho, aparecia a desafiar-nos por conta do nosso amor ao Ferrovia, Kurikutelas como lhe gostávamos de chamar, e a ensinar-nos como era a nossa Angola. Aí começaram os nossos sonhos.
Todos jogávamos à bola atrás do triângulo, num campo que se situava na fronteira do Bairro do Benfica com o do CFB. Jogos de campeonato. Uns descalços, os negros, outros com sapatilhas Sanjo, os brancos. Mas amigos inseparáveis. Unía-nos o mesmo sentimento de "ódio" ao Mambroa, ao Sporting e à Caála. E à injustiça e à descriminação. Éramos todos do Benfica de Lisboa e líamos, em conjunto fraterno, o jornal A BOLA que devorávamos da primeira à última linha. Aí aprendemos a questionar os mais velhos com perguntas simples mas de difícil resposta. Lembro-me de algumas. Se Angola é Portugal porque é que o Benfica não joga com o Ferrovia ou Se Angola é Portugal porque é que a Volta a Portugal em bicicleta não passa no nosso Huambo?
Anos mais tarde a Taça de Portugal deu um salto até à nossa terra. Aí tivemos o previlégio de ver jogar, também, a nossa Académica de Coimbra, o Manuel António, o Rui Rodrigues, o Gervásio, os manos Campos. Estávamos com eles mas fizeram o favor de empatar ( 1-1 ) com o Mambroa e adiar a decisão de os eliminar. Uma tragédia. Maka entre os do CFB e os de Cacilhas. Pontapés, murros, arranhões, cabeças partidas e algumas nódoas negras e lá estava o nosso médico, David Bernardino, para nos tratar das mazelas do corpo e aliviar o espírito de mais ódios. Com ele aprendemos como era linda e bela a nossa Angola e as suas gentes. O David era encantador para as crianças, entrava facilmente no seu imaginário e elas achavam-no divertido e bom.
Mas quem era este médico, que tratava da mesma forma os angolanos e os portugueses? Nascido no Huambo em 1932 aí iniciou a sua formação como homem. Fez os estudos primários numa escola privada na casa comboio da Rua Castro Soromenho, propriedade da família Dáskalos, cuja direcção era pertença da sua avó. Por esta escola passaram os seus irmãos, a Carmita, o Zé, o Luis e a Morena. Aqui adquiriram hábitos de estudo, de comportamento e de análise que vão marcar os seus futuros.
A infância e a juventude são passadas com algumas dificuldades. Aos onze anos levanta-se de madrugada para ajudar o pai na padaria e no conserto de bicicletas. À noite colaborava também na padaria pesando farinha e pão. As suas brincadeiras eram no quintal de sua casa com os filhos da lavadeira, comendo com eles peixe seco e pirão.
Esta fase difícil da vida teve o condão de transformar o David Bernardino num ser solidário e dos mais competentes da sua geração o que aliado à sua jovialidade e dinamismo lhe grajeam amizades e simpatias por todo o mundo. O curso de Medicina é terminado, em 1958, em Lisboa.
Exercendo a sua actividade como médico em várias províncias angolanas, é no Huambo que atinge plano de destaque. Em 1971, além da sua actividade privada, o médico David Bernardino é o pioneiro angolano do princípio " saúde para todos até ao ano 2000 ". Cria e mantem, a expensas próprias e com dádivas que consegue obter, o primeiro Centro de Saúde de Angola. Com este Centro pretende demonstrar que, utilizando meios locais, é possível formar pessoal preparado e que num curto espaço de tempo e com um mínimo de gastos financeiros conseguir cobrir toda Angola de Centros de Saúde. Divulga, por todo o país, os cuidados primários de saúde. Desta forma o David pretendía adaptar as condições locais à satisfação dos cuidados básicos de saúde.
Este Centro de Saúde é construido num dos bairros mais populosos do Huambo, o bairro de Cacilhas, com material local e com uma arquitectura local e clássica como é a estrutura de um jango. Apesar da inovação não consegue expandir nem materializar a sua ideia nem os seus intentos e mesmo depois da independência de Angola, em 1975, e quando os princípios por ele defendidos eram universalmente consagrados e aceites, também não encontrou o apoio oficial que esperava.
No seu Centro de Saúde de Cacilhas, considerado o barómetro mais efecaz para avaliar a situação angolana, pode sentir-se, a partir de 1988, uma galopante degradação das estruturas de saúde e sociais do Huambo. As crianças do bairro eram uma amostra evidente das precárias condições de vida existentes. Os seus ventres grandes e luzidios assentes em magras e frágeis pernas vacilantes espelhavam a real situação vivida. Eram todas atendidas no Centro.
Mostravam uma comovente gratidão ao doutor David, não por ofertas, actos ou palavras, mas através dos seus olhos alvinegros. Grandes como o Mundo onde despontavam uma fugidia centelha de alegria mesclada de incontida incerteza. O Huambo encontrava-se num confrangedor abandono e o ambiente tinha-se tornado sombrio, de espessa e evidente desconfiança. Mas apesar das condições traumáticas que se viviam, David consegue o mínimo indespensável e mantém a refeição matinal a que habituara a criançada do Centro. Com o apoio dos amigos, das ONG's e da OMS. Nesta época escapa milagrosamente à morte ao pisar uma mina que fez accionar mas não explodiu, quando se aventurava por estradas e caminhos levando saúde e conforto aos que mais precisavam.
O seu empenhamento como homem, médico e intelectual, lutador desde a primeira hora contra o facismo e pela independência de Angola, não lhe vai ser perdoado. Docente universitário, director do jornal independente " Jango ", fundador dos cuidados primários de saúde angolanos, empenhado em diversas acções no campo da investigação científica e histórica, residente no seu Huambo que nunca abandonou, envolvido no apoio social a uma população fustigada por anos sucessivos de uma guerra impiedosa, são outros dos pecados que nunca lhe vão ser perdoados.
E é a 4 de Dezembro de 1992, à saída duma consulta médica no seu Centro de Saúde no Huambo, que David Bernardino é assassinado por um esquadrão da morte dos galos negros. Morto em consequência da sua vida de militância, de coerência, de abnegação, generosidade e coragem.
O seu brutal desaparecimento despertou a indignação em Angola e no Mundo. Manifestações de repúdio e solidariedade chegaram da Bélgica, Portugal, Hong Kong, departamento de Estado Norte Americano, Argélia, Guiné Conakry, África do Sul e de outros países. De Portugal a mensagem mais sentida, pelos angolanos, foi a do actual Presidente da República, Dr. Jorge Sampaio.
Mas os galos armados de ódio e armas que cometeram este acto enganaram-se porque os meninos do Huambo, de Angola, crescerão e com eles crescerá a gratidão e a saudade por aqueles que se consagraram e consagram as suas vidas à felicidade de todo um povo. E como escreveu António Gedeão:

Eles virão e eu morrerei
Sem lhes pedir socorro
E sem lhes perguntar
Porque maltratam.
Eu sei porque é que morro
Eles é que não sabem
Porque matam.