Tabanka do Huambo

Saber compartilhar cumplicidades, na vida, como forma de cultura e de ciência. Cumplicidades de vivências com os amigos numa abordagem vital para a sobrevivência do Planeta Terra.

Nome:
Localização: Coimbra, Portugal

Nascido no Huambo, em Angola. Médico de Medicina Geral e Familiar pela Faculdade de Medicina em Coimbra. Médico na Lousã.

2006-01-30

EU VOU!

Passei por cá, pela minha Tabanka, porque
"Eu queria escrever-te uma carta
amor..."
Agora quase noitinha, os vidros do meu quarto embaciados pelo frio, mãos geladas no teclado a não conseguirem escrever mais do que foi dito, saio para mais uma noite à espera do desconhecido. Talvez precisem de mim, e eu vou!

2006-01-23

Hoje apetece-me escrever sobre isto ou sobre coisa nenhuma. Então vou escrever sobre isto. Repesquei um artigo do In Vivo, sobre a dor de alma. As nossas dores. E as nossas almas.

DOR DE ALMA UNIVERSAL

CONCEITO POÉTICO OU REALIDADE

É uma dor d'alma
Perder a alma
E não perder o corpo
A ela preso.

Sérgio Godinho

Após os trágicos acontecimentos de 11 de Setembro de 2001 em Nova York e Washington a que todos tivemos oportunidade de assistir pelos media, quase em directo, e as consequências que estes bárbaros atentados terroristas tiveram junto do povo americano e árabe, fizeram com que o mundo pensasse que quem tem alma não tem calma.
O conceito de alma para filósofos e psicólogos é uma assunção de entidades não físicas que por vezes interagem com o corpo humano. Entidade não física capaz de percepção e vida. Se se inventasse uma entidade para auto-satisfação dos humanos, essa era a Alma.
Afirma Thomas-Hobbes que a alma é o conceito de uma substância não física. No entanto não é possível imaginar uma entidade não física tendo percepções e sensações.
Ao contrário da dor. Entidade física que " estimula " a vida e produz sensações. Agradáveis e desagradáveis. Baseada em estudos laboratoriais e clínicos, a dor é " palpável ", medida e tem terapêutica.
E a Dor de Alma? Existe? Tem formas? Possui percepções e sensações? Trata-se de uma fórmula humana ou divina? Tem a forma de nuvem ou nevoeiro? Ilusão ou realidade? Os dinossauros tinham alma? E dor de alma? É algo que pode viajar no espaço e interpretar vibrações do ar sem órgãos sensoriais? Povoa o cérebro, o coração, habita o corpo humano ou trata-se de um conceito poético já cantado por Camões nos anos de mil e quinhentos e continuado, ainda hoje, nos cantos e encantos de Sérgio Godinho?
A fome, a destruição, a guerra, as catástrofes naturais, a Sida, a violência, o atentado aos direitos humanos, a intolerância, provoca em todos nós, seres racionalmente pensantes e com afectos e sentimentos, uma dor de alma que nos pode transportar até uma raiva incontida.
Mas se pensarmos que esta discussão pode ser biológica, quimica ou espiritual talvez seja uma dor de alma pensarmos que a razão está do nosso lado. Então será melhor pararmos. Tentar compreender. Não haver lugar para vinganças. Sermos tolerantes. Aceitarmos as diferenças. Vivermos em comunhão de esperanças num futuro melhor.
Se a discussão fosse entre os cientistas, poetas, filósofos, teólogos, sociólogos, médicos e outros homens de bem, talvez o Mundo fosse melhor. E teríamos chegado à estação da compreensão e da solidariedade, pois como diz Florbela Espanca " almas iguais à minha, almas que imploram em vão remédios para tanta mágoa " deveríam merecer um momento de reflexão.
Pois hoje é o primeiro dia do resto das nossas vidas.

Figueiredo Fernandes


Artigo publicado na In Vivo nº 10 - Ano III, Dezembro 2001 - Janeiro 2002

2006-01-21

MELANCOLIA

Sento-me na areia quente da minha praia, à beira mar. Sinto o mar fugir-me por entre as mãos. Hoje, não sei o que me acontece. As ondas só têm um sentido fugindo para bem longe de mim. Não consigo ouvir o bater do teu coração. Como gosto de sentir o teu desejo de me amar. Sentado à mesa do café, pressinto os teus passos e fico sempre com a sensação de que trocamos olhares ternos de amantes. Como se fosse a primeira vez, num jogo de sedução. Tenho sensações de me oferecer. Dar-te um beijo de amor é tudo o que aspiro, negando o desejo absurdo de sofrer. A maresia que vem do teu corpo desperta-me um amor alegre e brando de te querer possuir. Quero beijar os teus lábios, sentir a frescura que irradia dos teus cabelos negros, mergulhar nas ondas da tua paixão, navegar nas águas calmas do teu sorriso, eternamente sentir-me marinheiro da tua amizade.
Sei que sou um velho sonhador. Tremo com medo de me afogar nos enredos que a vida me proporciona. Gosto de saber que por vezes estou à beira do abismo. Parece que o meu barco sofreu um rombo e não tenho solução. O mundo já não tem para comigo amplos horizontes. As marés são terríveis neste sinistro mar. As pessoas correm sem rumo e atropelam-me como se fosse por acaso. Parecem não saber que semeiam as tempestades que me atormentam a viagem. Terei chegado ao fim da estrada? Ou será só a minha dor que busca amplos horizontes? Nunca o saberei. Talvez não queira saber.
Mas a sereia do mar do sul vem aí. Soberba. Vestida de branco, simples, sem grandes enfeites, alegre, na frescura de quem ainda ama, salpicando o meu corpo com a espuma do seu sabor a mar. Sinto que quero afagar o seu peito, tocar com as minhas mãos a suavidade da sua pele. Talvez não o suspeites mas mandei ir a garrafa pelo mar dentro com a minha mensagem. A nossa mensagem. Para que todo o mundo saiba que te amo. E que me tornas bom e saudável. São assim os meus dias de incerteza. Soturnos, vazios, sem anoitecer, com sombras, melancólicos. Despertam-me um desejo absurdo de fugir. Mas...
À beira mar desejava beijar o teu corpo. Amar-te.

2006-01-18

NOITES DE HAVANA

Percorro as ruas de Havana, junto ao mar. Estou no Malecón batido pela chuva tropical. As ondas passam o molhe, serpenteando a avenida com espumas coloridas pelos raios do sol que espreitam por entre as nuvens. O vento canta a serra onde os homens cultivaram as rosas brancas para, na vitória, oferecerem aos amigos verdadeiros. Este vento que golpeia o carinho do teu rosto e desalinha os cabelos soltos nos teus ombros. Pressinto que o teu beijo molhado pela chuva, desperto pela chama de um desejo sem fim, cantado pelas lágrimas sentidas na hora de nos despedirmos, ninguém o possui e é só nosso. É só teu, para ser verdadeiro. E a água que cola o teu vestido branco ao teu corpo de mulher escultural, realça as tuas belas formas por quem todos suspiram. Esta água da chuva que cai e corre para o mar depois de abraçar o teu corpo amado. Esta água que ninguém a tem. É a mesma água que forma as tuas lágrimas, molha a tua língua, faz navegar o grande lagarto verde num mar desperto que passa por entre os teus dedos. O mar do Caribe.
Havana é assim mesmo. Uma mulher enigmática e nostálgica. Bela e arruinada. Esplendorosa e complexa. Surpreendente e tranquila. É o aroma de um charuto cubano, o cheiro do corpo de mulher que transpira paixão, o sabor suave de um rum envelhecido e a quentura de um corpo vibrante. Havana é uma cidade que devemos saborear enquanto caminhamos pelas ruas plenas de história e a devemos amar durante as noites quentes ao som da música das Antilhas. O ar que percorre Havana é o ar que percorre o Olimpo e passa entre as flores coloridas dos jardins, debaixo de um céu azul repleto de mensagens. Ninguém consegue ficar indiferente à tela pintada nos terraços da Bodeguita del Médio tendo por artistas os tocadores e cantadores da trova cubana. Como é lindo ter por companheiras, nas noites quentes, as feiticeiras que nos inundam de vida.
Noites demoradas ou manhãs breves com sorrisos deslumbrantes que se cruzam connosco e que são o refúgio de cumplicidades de uma terra que gosto que seja minha e onde me apetece ficar a olhar os velhos do mar a tentar sobreviver nas tempestades da ingratidão. Como Hemingway, acabo sempre, nas noites de Havana, a beber o meu mojito na Bodeguita e o meu daiquiri na Floridita. E embarco para o lugar dos cinco mil silêncios afundando-me no fechar das portas de quem domina a imaginação dos meus sonhos. É em Cuba que um dia, também, hei-de cultivar as rosas para os meus amigos verdadeiros. Na terra onde todos os pés se apoiam nela e onde ningém a possui. Ninguém!

2006-01-13

IRRA!

Irra, cai nem estrondo! Quem pôs essa porcaria de balde na entrada? Tásse memo a ver que foi malta de fora. Hoje vamos a todas. Sai um mojito com rum preto. Que buba. Éden, eu quer é ir no céu, mas nos braços de Tamara.
Mas como já não tou em condições de habitar vou-me deitar. Espera só, onde é WC (quem disse WS é pra provocar) pra cabritar mesmo? Ah portas do fundo. E entro de frente ou marcha trás. D. Juventina não disse portas!!!

2006-01-10

MARINHEIRO DE DESEJOS


Este louco ser humano, louco navegante, indígena do sul, apaixonado por viagens, em Dezembro de 2005 ficou tão encantado e maravilhado como quando, a 18 de Setembro de 1502, Cristóvão Colombo aportou, na sua quarta e última viagem, à baía de Limon, também chamada de Cariari, e habitada pelos autócnes da Costa Rica. Cristóvão Colombo e os seus homens faziam história porque pela primeira vez esta terra recebia um homem branco. O mesmo já não aconteceu comigo! Nem aconteceu história, nem era o primeiro homem branco a chegar a estas paragens. Em Cariari, o Almirante Colombo, permaneceu 17 dias para reparar os barcos e dar descanso à sua tripulação, doente e esgotada pelas violentas tempestades no mar. Após o repouso, Zorobaró e Veragua foram os locais "visitados", mais tarde, pelo Almirante e os seus marinheiros.

Em Novembro de 1821, a Costa Rica declarava a independência da Espanha e em 1983 o presidente Luís Alberto Monge invoca o peso simbólico da história costariquenha e declara o país neutral "de forma perpétua, activa e não armado". O fim do exército teve o apoio popular à "Declaração de Neutralidade" e uma gigantesca marcha pela Paz desfila pelas ruas da capital, San José. A paz converte-se na base da política externa da Costa Rica e foi a bandeira do governo de Óscar Arias Sanchez (1986 - 1990) e da jovem geração do Partido de Liberación Nacional - PLN, o que lhe valeu o prémio Nobel da Paz em 1987. Fixo-me nestes pedaços da história deste pequeno país da América Central enquanto percorro, de Sul para Norte, a auto-estrada pan-americana, de San José a Puntarenas.
Agora sentado numa esplanada em Puntarenas, aguardo o barco que me há-de levar a Tambor e às suas praias protegidas da Baía Ballena. Como os marinheios do Almirante, bebo a minha Imperial, cerveja local, que me aconchega a solidão e as palavras de muitas ilusões que negoceio com a folha de papel rabiscada onde escrevo estas lembranças, longe dos sonâmbulos sonhos. A cerveja serve-me de companhia aos sonhos e à refeição de arroz branco e feijões fritos com carne e presunto, Gallo Pinto, prato tradicional da gastronomia indígena.
Olho para o mar e para as nuvens que viajam directamente para o sul. O sol, do final da tarde, doura-se nas coxas crioulas de uma "machita", cor de ébano, de carnes quentes e que relampejam desejos de amor. Recordo o poema de Ana Istarú, Amor, que me sugere que quando ingerimos qualquer tarde "os ombros ardem como estrelas ou mares", mas "como qualquer milagre de orvalho, é frágil... e deixam guardados a chave, os beijos". Frágil é esta minha paixão tardia que só tem palavras, não se quer comprometer e só pode oferecer um olhar suave e terno.
Neste lugar de latitute zero, como escreveu Osvaldo Sauma, fico silencioso ouvindo a música de El Charro que canta e recita poemas de trovadores populares e tradicionais. Como é bela a música tocada por instrumentos como o ukelele, o quijango, a zambumbia ou sheki sheki, a tumba, os güiros e a carcholata. Assim será mais fácil sonhar enquanto caminho palo Parque Nacional do Vulcão Poás, a 1900 metros de altitute, ou no Refúgio Nacional de Curú. Como Cristóvão Colombo em 1502, também eu, em 2005, me mantenho impressionado diante de tanta beleza natural e de tão rico território que faz da Costa Rica um palenque de pura vida! Mesmo não encontrando os índios chorotegas, borucas, huétares, guatusos e guaymis, engalanados com o ouro, mas somente os ticos transbordantes de simpatia e revelando que tudo o que dizem e cantam vem das suas veias.
Já noite dentro, agradeço a Sibú, ser supremo, criador do Universo, divindade dos cabécar e bribrí. Nesta mesma noite em que uma lua prateada descobre o horizonte e habita o teu corpo de mulher, e cavalga entre as tuas pernas num emaranhado de poemas procurando uma caverna tépida e húmida banhada por pulsações suaves, ávida de receber amor. Cascatas de beijos brotam da tua boca num ímpeto de desejos. Lá fora a chuva cai de mansinho no imenso areal da praia de Tambor, na Baía Ballena, como as gotas da minha Imperial que orvalharam a sede do meu desejo, naquele porto em Puntarenas.

2006-01-08

O SURFISTA

Rosita andava atarantada! Não tinha encontrado D. Juventina com quem passava os dias a segredar os seus males. O Juventin's Bar mantinha-se fechado e na Taberna não lhe apetecia ir. Mesmo com a festa de arromba que sabia estar a acontecer.
Fugiu para o Mussulo. Sentada na areia, entre palmeiras e o sol quente, mergulhada no pensamento distante, olhava as ondas. Nostalgia dos verões que aqui passou com amigos que estavam lá longe, para lá da linha que as ondas escondiam. Mesmo hoje, dia da padroeira de Portugal, Nossa Senhora da Conceição, não conseguia ter raiva a quem a tinha deixado sozinha. Ela e a sua Nossa Senhora da Muxima.
De repente uma prancha, com cores já gastas, rasgava as ondas, as suas ondas, fervilhando em espuma e volteando na crista do mar. Em cima da prancha os seus olhos viam um deus negro, pingando suor misturado com o sal das ondas, das suas ondas, simples como são simples os que gostam da vida, uma verdadeira estátua ao amor. Um surfista ou uma miragem? Não era mesmo ele, o surfista. E Rosita que pensava que os surfistas eram loiros, sem corte de cabelo, oxigenados e de voz rouca...
O seu olhar vagueava pelo mar, horizonte e surfista, como uma gaivota à procura de peixe nesse mar africano que não é só azul, onde as cigarras não cantam só à noite, os tambores ecoam ininterruptamente, ou a terra cheira a molhado. Poesia de europeu em filmes a lembrar um passado que ela recordava mas ao qual não se sentia amarrada.Parecia hipnotizada pelo quadro pintado a cores apaixonantes. O coração parecia um tsumani onde o surfista tentava manter-se, cheio de amor, e percorria as ondas do seu corpo com a prancha sempre pronta a desenhar o mar de um prazer que só acaba no espreguiçar da espuma na areia. Nélson fez amor toda a noite e se despediu de manhã saindo numa onda que lhe esvaziou o quarto e o coração.
Correu o risco de se apaixonar. Porquê? Nem ela sabia a resposta. Responderia como uma vez Cesária Évora tinha respondido a um jornalista da TPA quando este lhe perguntou porque é que a diva cantava descalça e ela respondeu: Porque sim!
Pegou no copo, sempre junto a ela. Bebia uma bebida de cor exótica, intensa, com um paladar inconfundível, que se bebe sozinha, originária do Norte mas com nome de Sul. Pisang Ambom. E adormeceu ali na areia, junto à palmeira que à noite lhe tinha servido de quarto e onde se ouviu os gemidos mais febris e apaixonados que alguma vez o Mussulo tinha ouvido.
D. Juventina me espera para eu lhe contar esta minha paixão. Mas nunca pense que vos vou contar tudo...

2006-01-06

TROVOADAS

Tamara hoje se levantou tarde. Se sentou na esteira e bebeu café bem forte. Estava com uma dor de cabeça que pareciam as trovoadas da Cela.Toda a noite sonhou com uma polaca que se chamava, também, Tamara. Um dia tinha ido ao Karl Marx ver teatro com o avô e se lembrava de ver uma peça de John Krizanc, T de Lempicka. O avô só criticava estas novas influências em Angola vindas de um socialismo que até queria pôr alguns kandengues, que ele bem conhecia lá do Bairro da Cuca, a dançar em pontas. Eles que sempre andaram descalços! Tamara ficava contente de saber as histórias de outras mulheres de outros mundos.
A outra Tamara, a polaca, expatriada, aristocrata e pintora, chegou a Itália convidada por Gabriele d'Annunzio, um poeta e patriota, fascista, para lhe pintar o retrato. Na sua mansão, Il Vitorialle, Gabriele tenta-a seduzir e só sonha pagar-lhe o trabalho com os prazeres da alcova. Não se deixa cair em tentação e Tamara sai para Paris.
Assim são as estórias das Tamaras do mundo!!! O café de Tamara hoje estava mais azedo.

2006-01-04

1 DE DEZEMBRO

Rosita acordou tarde. Não sabia porquê, mas não lhe apetecia nem apanhar o sol do fim da tarde. Trabalhar nem pensar. E amanhã 1 de Dezembro ainda estava habituada a que fosse feriado. Da Restauração embora a avó Fina lhe dissesse que restauração só dos móveis e de coisas velhas. Mas trabalho voluntário já demos. O Eme sempre gostava dos dias para o estado. Já alfabetizara, já tratara do lixo lá do bairro e até a jardinagem já executara no Liceu Mutu. Ela que até era professora. Agora fazer mais trabalhos, não já não tinha, como se diz, estimulação. Estimulada estivera com Tamara. Que noite, nem que fora as mil e uma noites. Comemorar o Dia Mundial da Luta Contra a SIDA não, não estava vocacionada. A SIDA é doença de pobre. E ela com os esquemas no Roque Santeiro até dava para ser remediada.
Decidiu não ir ao Juventin's. Não gostava que lhe olhassem como se fosse criminosa. E D. Juventina lhe olhava de uma maneira que só visto. Não lhe aprovava as noites de prazer. Um dia, jurava a Nossa Senhora da Muxima, talvez D. Juventina tivesse só um prazer.
Adormeceu e sonhou.

2006-01-03

TENTAÇÕES

Caminho pela madrugada na solidão das ruas da cidade. Mãos nos bolsos, aquecido pelo polar-teck azul marinho que trago vestido, vou pensando como estão frias estas madrugadas. Quase tropeço no gato preto que se atravessa à minha frente. Corre para o outro lado da rua à procura do eterno caixote do lixo onde sobram os restos de comida dos bares e restaurantes desta cidade que não dorme. Vai depressa. Quer ser o primeiro a chegar. Muito antes das mãos famintas das sombras da noite. Emigrantes. Uns de leste, outros do sul. Desconsigo deixar de pensar como deve ser triste a fria noite daqueles que recusamos a não ver. Continuo a caminhada do fim da noite. Quero chegar cedo à Esplanada, mesmo antes do reboliço das manhãs e saborear o cheiro a café e pão quente. Gosto de receber os bons dias de gente feliz e ficar sentado a olhar o zulmarinho. Procuro, no denso nevoeiro da manhã, o vai e vem dos navios que chegam e partem do cais dos sonhos. O frio aconchega-me a pele à cara e à alma. Parece massagem em salão de beleza e consegue suavizar as dores que sinto nos ossos, músculos, vasos e nervos que constituem a anatomia deste corpo dilacerado pela vontade de partir. Na mesa está o livro, acabado de ler, de António Botto, Canções. Não posso deixar no esquecimento o que li no poema Pequenas Esculturas. Erguem-se vozes. O clamor, a barafunda vai avultando no silêncio da senzala. E o batuque principia. O luar cai muito quente, gorduroso, na areia que escalda…

A esplanada começa a encher-se de gente. Gente sempre com pressa e ávida do prazer da fadiga. Sinto que há muita gente que vem à Esplanada, que mora na minha Sanzala, e que eu tenho a certeza que são a mentira do futuro. Outros olham o horizonte e a contemplar contestam. Outros, apaixonados intervêm. Gosto mais destes últimos. Os contestatários e os apaixonados. Os da mentira, andam nus a saltar na areia da praia e quando procuro olhá-los recusam, amedrontados, fixar os meus olhos. Rio aos desafios frágeis de todas as razões. Mesmo isolado gosto de abraçar os amigos com a minha rebeldia. Embrutecidos pelos tempos dos rumos ultrapassados, os da mentira seguem outros caminhos e nós ficamos, à luz do dia, a amar a verdade, na saudade de tudo. Apetece-me chamar-lhes, atrofiados!

Fixo, agora, o mar e vejo nele os teus olhos onde não há depois. O teu corpo moreno numa dança estética que me enche de curiosidade. A tua sensualidade é como as águas das ribeiras e dos rios. Perdem-se no mar. Como diz o poeta, busco a beleza na forma, e jamais a beleza da intenção, a beleza que perdura. Oiço as quatro tentações de maravilha, canção que me entreabre um sorriso. Peço um café e olho o infinito.

2006-01-01

ESCREVER...

Escrever pode ser uma fonte de força

Wang Liang