Tabanka do Huambo

Saber compartilhar cumplicidades, na vida, como forma de cultura e de ciência. Cumplicidades de vivências com os amigos numa abordagem vital para a sobrevivência do Planeta Terra.

Nome:
Localização: Coimbra, Portugal

Nascido no Huambo, em Angola. Médico de Medicina Geral e Familiar pela Faculdade de Medicina em Coimbra. Médico na Lousã.

2005-07-28

MERGULHO

Hoje fico mesmo aqui parado no meio do areal da praia sentindo o vento soprando como qualquer coisa que me reconcilie com os prazeres inocentes dos momentos. Pareço papagaio na mão de uma criança esvoaçando no azul do céu e fazendo piruetas ousadas de um percurso experimentando os medos e rasgando a redescoberta das formas. Tranquilidade de um fim de semana cheio de aromas e de autenticidades. Olho a luz que vem do mar, ou será do sol, e espero pela doçura tingida por tons de vermelho.
Refresco-me com as gotas da água do mar que o vento me lança contra a face, sentindo o líquido descer pelo corpo como uma onda caindo em tentação de provocar tempestade. Uma vaga de espuma sacode-me o recife de desejos que me tornam, mais uma vez, romântico, inesperado e natural. Agora estou na esplanada do café, experimentando outros sabores, que me fazem rodar a cabeça como o papagaio da criança, agitar o corpo como que sacudido pela força do vento e agitar o meu interior que considerava protegido contra as ondas carregadas de espuma de saudade. O sol escondeu-se de uma maneira inesperada para lá do meu recife de emoções e sensações. Talvez fosse o momento de dar um mergulho no mar azul do teu corpo de mulher.

2005-07-27

NUMA ALDEIA NÚBIA

Em Abril de 2005 visitei o Egipto. Numa das aldeias núbias encontrei o meu sonho de estar com a minha gente, na minha África. Daí um poema de Agostinho Neto pra criar liberdade nas minhas estradas escravas.

Campos Verdes

Os campos verde, longas serras, ternos lagos

estendem-se harmoniosos na terra tranquila

onde os olhos adormecem temores vagos

acesos mormente sob a dura argila.

Seca, como outrora minguou a doce esperança

quente, imperecível como sempre o amor

sacrificada, sangrada lembrança

do esforço bestial de látego opressor.

Em campos verdes, longas serras, ternos lagos

refulgem ígneas chamas, rubros rugem os mares

cintilando de ódio, com sorrisos em mil afagos

São as vozes em coro na impaciência

buscando a paz, a vida em cansaços seculares

nos lábios soprando uma palavra: independência!

COZINHADOS

Um dia, uma amiga minha perguntou-me se eu sabia o que era Tai Pau e quais os meus conhecimentos de cozinha. Com a mania das viagens e apesar de ter estado por diversas ocasiões em Macau, Hong Kong e China nunca me passou pela cabeça aprender fosse o que fosse em mandarim ou cantonês. Mesmo que fosse só Take Away. Mas mais divertido seria dizer a esta marafada que, em pleno século XXI, não sabia sequer fazer um bife. No final lá resolvi contar as minhas duas experiências falhadas na cozinha, por imperativo de que na década de oitenta do século XX só viverem homens naquela casa de S. Miguel, Açores.
Devo dizer que tentei cozinhar duas vezes. Da primeira, para estrelar um ovo e o dito cujo fugiu da frigideira como o diabo da cruz. Mas, para gáudio meu, estatelou-se no chão. Ficou com as ventas que nem patrício com nariz à boca de sino.
Da outra vez, tentava eu grelhar um bife e eis senão quando, vá lá saber-se porque motivo, atirei o bife ao ar para o virar. O pedaço de carne, da coxa da vitela, lindo de morrer, esgueirou-se pela bandeira da janela da cozinha e... Fui dar com ela, a carne, que não a coxa e muito menos a vitela, na boca da minha Maria Boris (uma cadela, Uma Collie castanha e branca, uma senhora). Nunca mais visitei tal dependência da casa.
Mas devo referir que não me dei mal a cozinhar com o belo pau do funje pois consegui dois belos exemplares e bem cozinhados. Fêmea e macho. Mas foi cozinhar em lume forte, cheio de chama e fogo, mechendo como diz a canção. Será que foi ela a mexer o chocalho ou o chocalho é que mexeu com ela. Nunca soube quem aconchegou tão bem o chocalho e como foi chocalhado o conduto para sair macho e fêmea. Mas digo-vos, que foi um belo cozinhado.

2005-07-26

HAVEMOS DE CHEGAR

ET PLURIBUS UNUM

Arre porra.
Quem disse isto? Deu-me a enxurrada cerebral e varreu-se-me (não me cheira bem esta palavra e já devo ter a minha amiga PWO à perna - isso querias tu ó Pífaro do catano! -, cheira-me a mijo) o nome do homo sapiens que disse tão brilhante frase.
Arre. Sempre tentei que mudassem as roupas dos médicos do bloco operatório, médicos e restante pessoal. Nunca consegui. E sabem porquê? Eu explico.
Porque o verde, o azul e agora o amarelo são cores anti estresse e cores quentes. Que dirão os meus amigos do Sporingué, daquela equipa de uma cidade do Norte e que veste de azul e branco (não vos disse que se me varreu as lembranças) e do Estoril. Se as cores dos seus equipamentos são anti estresse e quentes, porque será que quando se vai aos seus estádios aquilo parece sempre um hospital psiquiátrico. Tudo aos gritos e só pis nas legendas e nos diálogos, pois é só asneiredo. E no final dos jogos os homens da televisão sempre afirmam que os adversários gelaram o estádio? Será pela falta de vitórias?
Mas preto também não podia ser. Embora a Académica equipe com esta cor e seja tudo academista, quando um tipo entra na Sala ou BO (não é o Bairro Operário - esse era para outras operações, mais para as fimoses e iniciação ao bisturi - é mesmo Bloco Operatório) e vê um tipo vestido de negro, ou lhe parece o árbitro do jogo e começa a chamar-lhe palhaço, filho da puta, ou então não gosta de pretos e grita-lhe, vai pra tua terra ó negrume. Grande bararca.
Todo azul, bem do Belenenses, vá que não vá, mas velhos do Restelo, diabo que os levem. E tanto azul parece o mar e quem não sabe nadar pode-se afogar, e não é grande coisa. Mesmo que se saiba nadar um tipo pode enjoar e depois vomita. Não, azul não, entre o mar e o céu só mesmo a terra e é onde queremos ficar e essa não é azul.
Rosa e laranja, também não. Política metida com a saúde nunca deu bom resultado. E sempre pode aparecer um deitado a fazer maca e a maca é precisa para levar o tipo a bom porto. Já viram o que era um tipo aos gritos, a Beleza quere-me matar ou o Correia de Campos que vá capar os da laia dele. Dava mau resultado!
Às bolinhas, às riscas, com bordados, folhinhos e outros adornos, virava mesmo maca, pela certa. Ó médico, seu corrupto do catano, julgas que eu sou maricas ou quê? Só me mete o dedo no cu quem eu quero! Tás a ver seu mariconço. Gosto muito de gajas, ouviste? Teria que estar sempre uma companhia de seguranças a vigiar estes moços do wrestling.
Bem não restam dúvidas. Os fatos têm que ser vermelhos. Um tipo enquanto está a ser devorado pelo médico cirurgião pode voar com a águia, dar uma volta e depois entregar aquilo que lhe é retirado à águia que é uma ave de rapina e gosta de comer caranguejos (símbolo do Cancro - agora fui pedagógico como o Barão da Lajeosa). Depois antes de adormecer, anestesiado, a malta só vê a Luz. Quando se volta à enfermaria e aparece um médico vestido de vermelho um tipo grita a plenos pulmões Sai Satanás, vai pró diabo. E o animal foge. Nós ficamos mais aliviados porque é uma forma de vingança.
E, gloriosa virtude, no final, médicos, enfermeiros, assistentes, auxiliares, restante pessoal, doentes poderão gritar Et Pluribus Unum. Todos por um. Pelo doente. É isto que nos faz grandes e solidários.

2005-07-23

BEIRA SERRA VESTIDA DE LUTO

Consegui ultrapassar mais um dia. Saltei o tempo que separa as vinte e quatro das zero. Nunca entendi se isto era uma vantagem chegar às duas dúzias e voltar ao ponto de partida. Apesar de ser um novo dia. Ou será um dia novo? Muitas batalhas houveram nestes dias. Quase em permanência, vejo as luzes azuis, os gritos de sirenes e de gente, o fumo e o calor de serras à minha volta que ardem e se vêm. O correr da falta de tempo e da falta de forças daqueles que se deixam vencer. As lágrimas de gente que fica a olhar o passado e o futuro, sem esperança. E não me apetece recordar o fogo que arde sem se ver. E fico a seco, sequioso de saber porque tudo isto acontece. Rostos talhados pelo tempo, vozes embargadas pelo destino, olhares nublados pela água que falta. Só pó e fumo. Empurrados pelo vento. Não, estas não são as queimadas das pinturas dos meus olhares colocadas em paletas de gente que ama. Com tintas fortes e quentes. Sinto que não estou só e que muita gente boa volta à minha tabanka para bebermos a poesia das palavras, qual analgésico para as dores da gente que sofre. Nesta beira serra que já está negra de luto e deixou o verde da esperança. Quase definitivamente.

2005-07-19

MOMENTO IDEAL EM SOUSSE

Hoje desço as escadas que se encontram ao fundo da rua do souk El Caid e subo, num instante, ao terraço do café Aladin. Peço o meu chá com menta e percorro o horizonte. Ultrapasso a medina e abraço o mar, o mar que sei que daí a um instante vai amar o sol. Tinha partido da Grande Mesquita, percorrido a rua de Paris, negociado na rua do souk Er Riba. Sem pressa, passeei na rua do souk El Caid e fui dar à praceta situada em frente da porta El Gharbi. Depois de visitar a Torre Khalef percorri alguns dos souks mais bonitos de Sousse onde se faz amigos de recordações, e eis que aqui cheguei. Ao terraço.
Sousse é uma cidade estudantil situada na belíssima região do Sahel, com planícies áridas carregadas de oliveiras. Os olivais do Sahel fazem a linha que divide o deserto, mais africano, da região mediterrânica com uma herança histórica e cultural importantes. Os fenícios, os púnicos, os cristãos, os vândalos, os bizantinos, os árabes e os berberes aqui, em Hadrumetum, fizeram história. Sousse é nome de origem berbere.
Continuo à procura do momento ideal. Encontro a confusão do bairro antigo, com pequenas casas, confusão harmoniosa, e encontro além das ruelas e de uma arquitectura tradicional, caras lindissimas e olhares simpáticos das gentes locais. Sem esforço chego ao final do meu chá e encontro na linha recta de um horizonte majestoso um sol, como o da minha África, a abraçar o mar num amor cálido e transparente. Abandono a pérola do Sahel num pequeno comboio que me leva até Monastir. Tenho saudades das paisagens fascinantes da Tunísia, dos desertos e lagos salgados, oásis e montanhas despidas.

2005-07-13

12 de JULHO

Estou na linha que divide o Planeta em Norte e Sul. Hoje não sou de cima nem de baixo desta Terra onde as crianças deviam brincar felizes e todos os homens ouvirem o cantar das águas. Bem Alda do Espírito Santo cantou. É a chama da humanidade/cantando a esperança/num mundo sem peias/onde a liberdade/é a pátria dos homens...
No calor da tarde, sentamo-nos todos, lado a lado, nas areias da terra tão bela onde a espuma do mar vem dizer baixinho à praia que temos África no peito. Companheiros de estrada, a nossa esperança, sagrada, é sabermos que existem noites feiticeiras, batucadas loucas, palavras de ritos seculares, mãos milenárias que quebraram as algemas das roças, dos contratados, dos escravos e que o grito de liberdade desliza serenamente rumo à Praia Maravilhosa.
Em S.Tomé estamos juntos, no Príncipe entrelaçamos os nossos braços, acendemos a chama da humanidade e começamos a construir a pátria dos homens.
Um silêncio percorre os mares do futuro, sentindo o bater do coração como ondas de ilusões, ouvindo os sorrisos daqueles que sujaram com o seu sangue as estradas da vida e da morte e que mostraram o caminho longe. Por isso amamos África.

2005-07-11

FECHO OS OLHOS

Fico longe do mar, na noite mágica, a remar saudades muito depressa. Fecho os olhos, atravesso a fronteira das coisas, viajo para bem longe, bem longe da miséria deste tempo. Sinto-me preso às rochas da praia, faço esforços para zarpar, impossível sair, estou preso como uma lapa, incapaz de aproveitar o bater da água salgada e começar a navegar. Gostava de navegar e partir livre, aconchegar-me nos braços da minha estrela do mar, iniciar a viagem até à terra de todas as cores, aportar às areias molhadas do teu corpo.
Na terra de todas as cores sinto o mel dos teus beijos, as ondas mornas de espuma e de sal das tuas carícias, o cheiro a mar que irrompe das escarpas do teu sentir. O teu sentir e o teu destino. E descubro o ritual da deusa amada em noite de chuva e tempestades. Beijo os teus ombros e espero pela frescura da madrugada, anunciando a ternura do teu sorriso, para me esquecer dos dias mais compridos.
Peço mais gelo e bebo de costas, deitado na areia da tua praia, olhando a lua e as estrelas da noite escura que caminham, lentas, caladas, coroadas de negro. Como a noite. Não pago as birras geladérrimas que prefiro, escuto a canção da alegria da carne, consumo o teu corpo às escuras, à minha maneira. Com doçura. Humildemente agradeço as palavras gratas do rumorejar do teu mar que me alagam a solidão da noite. Fecho os olhos, atravesso a fronteira das coisas e viajo para bem longe.
Aqui, meu amor, neste longe, os teus beijos ondeiam os meus desejos do brilho doce da minha meninice. Boa noite, princesa.

2005-07-10

ESTAMOS JUNTOS

Mermão caboverdiano. Aquele abraço, apertado na Portón di Nos Ilha. E hoje refresca as ideias e desvia o olhar para aquela crioula. Parece mar cristalino a afagar o teu corpo. Estás grogue de desejo, por isso larga, por hoje as birras e vamos beber coisa mais forte. Um grogue. Queima-te as goelas? Um ponche de Santo Antão cá escriba desta mensagem.
Assim vamos sonhar com o céu de Cabo Verde, as estrelas que correm para o Sul, ouvir Os Tubarões cantar liberdade e independência. Ouve o mar a contar-nos os seus segredos. De mansinho. Esquece a bruma seca que vem do deserto. Só serve para aumentar a nossa sede de saudade. Estamos juntos.

2005-07-05

5 DE JULHO

Quand sol tá dá ná bô
Bô sorriso é um paisagem floride
Bô cara tá lembra'n bondade
Bô presensa na mi é tcheu

........

Quand mar tá esquebrá na reia
Ondas cristalinas tá fáze'n sonhá
Bô jet é natural di criança
Na mi é tcheu.

Tito Paris

Hoje a saudade invade-me o peito, talvez sem sossego, sem um sonho, sem um beijo. Não sou pássaro que viaja nas ilhas, mas retenho o mar que me mata a sede da saudade. Vou tamborilando os dedos na mesa enquanto escuto uma canção de Tito Paris. Assim é mais fácil percorrer as ondas do teu corpo, iluminar o meu caminho com o brilho do teu olhar.
Meu Cabo Verde, meu amor, nha cretcheu. Sob o teu calor abrigaste-me em tempo de paz, em tempo de guerra, das longas ansiedades de estar longe da minha eterna namorada. E sempre o mar que me desassossega, sempre dentro de mim. Sou levado no meu espírito irrequieto a percorrer todas as areias, as rochas, os caminhos navegáveis e a escutar os silêncios e os gritos daqueles que não têm medo das palavras. Nha Isabel me acompanha no percurso crioulo das ilhas. E ela também entendeu que para lá daquelas ondas que não param nunca, atrás do horizonte azul sempre igual, talvez para lá do fundo do mar, há gritos diferentes. Boavista, S. Tiago, Sal, São Vicente, Santo Antão, que importa o caminho que percorremos se a liberdade da criança é a mensagem de quem olha com esperança o dia que há-de vir.
Devagar, ilha a ilha, dor a dor, amor a amor, o nosso mar continua azul e é o nosso destino. Mil esperanças nascem no sabor do sal da terra, a poesia marca uma morabeza de certezas, a música uma madrugada de sonhos. Desde 5 de Julho de 1975 que, na estrela de dez ilhas, nasceu um povo novo que se renova. E eu e Nha Isabel voltaremos ao nosso bote para nos sentirmos embalados como nas noites de luar da minha infância. Sabura do meu Planalto.

VIAGEM AO VIRAR DA NOITE

Mermão. Corro à pressa, muito sem jeito, para o Magia. Ele vai partir num instante e vai levar todos os que connosco se refrescam na espuma de uma birra mil vezes bebiba, mil vezes amada. Consigo entrar mesmo, já no último segundo, para embarcarmos bem para o sul. Chegaremos juntos ao virar da noite, ao virar de um dia para o outro. Chegaremos a 5 de Julho e com nha cretcheu percorrerei as ruas engalanadas de nos terra, festejando com nos povo a alegria de sermos livres. E será morna, coladera, funaná, batuque, todo o dia. Festa que anima a alma e enriquece o coração. Todo o dia brindaremos às loiras e às morenas, ao futuro de Cabo Verde, de África. No final zarparemos com a morabeza a apertar o coração e com a sabura de sabermos ter estado entre irmãos. Vá mermão, faz-me companhia nesta alegria. Bebe um grogue comigo, brindemos à liberdade.

2005-07-03

MEMÓRIAS DE KAIROUAN

Tenho a garganta seca pela poeira das ruas da cidade sagrada dos muçulmanos, por onde andou o profeta Maomé, quando da passagem pela Tunísia. Depois de Meca, Medina e Jerusalém, Kairouan é a primeira cidade árabe da terra de todas as noites. Desesperado olho para o céu à procura da água que me enchesse de frescura o poço da minha admiração. Só encontro o azul do céu e nem vejo a lã que pode bordar de alegria as nuvens do meu sonho. Este azul do céu do meio dia sobrevoa a medina deserta. Sento-me à porta da Mesquita, a Mesquita do Barbeiro, onde ardem as palavras do Profeta. Aqui, segundo a lenda, está sepultado Abu Zama el Balaoui, amigo de Maomé, que terá transportado até à morte três pêlos da barba do Profeta. Lição de amizade que me invade a doçura de outras horas.
Sinto o segredo refrescante do vinho Sidi Saad bebido, nas horas das noites passadas com os palradores do deserto, enquanto as minhas mãos se encontram com outras mãos. As mãos do amor. Olho a linha que separa o amarelo do azul, espelho de água, e não vejo as ondas, nem sinto as gaivotas que me podiam trazer as palavras da memória, navegadas pela caravela que rasga o mar e que se deixa atracar na praia do destino. Assim, caminhamos juntos pela riqueza das cores, descobrindo o amor que espero eterno. Percorremos as ruas à procura dos teus passos e as palavras vinda da Grande Mesquita voam, em redor de nós, alagadas em suor. E vem o mar e os nossos lábios unem-se num beijo salgado debaixo da palmeira do nosso caminho. Em Kairouan onde crio as memórias que hei-de ter.

2005-07-02

CAFÉ DES NATTES

Hoje flutuo acima do mar azul e dos verdes bosques da terra do sol nascente e do sol poente. Avisto lá longe, bem longe, os oásis do deserto tunisino, dos chotts e dos lagos salgados e secos. São como espelhos onde desfruto a minha liberdade. Hoje não me apetece a água das fontes. Bebo um tinto áspero e aromático, o Vieux Magot, e preparo-me para subir a colina, caminhando como fosse a navegar na magia das cores, imortalizada pelas telas de August Macke. Pintor alemão que me deu a conhecer o encanto despido de lonjuras.
Subo por entre as estreitas ruelas e descubro a beleza das casas brancas com o toque do azul brilhante. Admiro as varandas envidraçadas e as janelas e portas de madeira desta bela cidade construida pelos árabes andaluzes fugidos de Espanha. Sidi Bou Said permite entender o belo mosaico azul que tenho a meus pés. Sentado numa esteira do Café des Nattes, tenho uma vista deslumbrante da baía de Tunes. A magia de ver, em azul turquesa, o mar que me há-de levar de novo a brincar debaixo da minha mangueira. Lá bem para Sul.
Bebo, suavemente, ao fim da tarde, o chá amargo servido com folhas de hortelã pimenta e alguns pinhões. Fecho os olhos e venço as muralhas de areia e vento para chegar ao destino. De quem ama a serenidade e o orgulho de estar em África.

2005-07-01

ONDE EU MORRO

Claro que estou meio zonzo. Não das birras ou do tinto do jantar. Já agora, que sabor divino Baco terá dado a este Vale da Burra para imitar as ondas de um mar azul marinho. No meu passeio nocturno, entre as Sanzalas do meu bairro, tive que dar de caras com os cães esfomeados, que ladram até altas horas da madrugada. E não respeitam quem quer cumprir a terapêutica ensinada em papel falado. Deve andar, pelo menos, meia hora por dia.
Mermão hoje também é dia de festa apesar de ser mais um dia triste. O Kota morreu de morte anunciada e de tanto lutar contra os lobos e as hienas. Viveu fora, mostrou o seu descontentamento, denunciou, fez-se solidário, e teve sempre esperança de soltar as palavras certas. Vi na televisão, as bandeiras da sua vida na sua morte. E como Aragon dizia, Onde eu morro nasce a Pátria.
Emídio Guerreiro é agora terra, fogo e cinza mas continua vivo na memória histórica cavada ao longo dos muitos anos. Abril está sempre presente no coração dos homens.