Tabanka do Huambo

Saber compartilhar cumplicidades, na vida, como forma de cultura e de ciência. Cumplicidades de vivências com os amigos numa abordagem vital para a sobrevivência do Planeta Terra.

Nome:
Localização: Coimbra, Portugal

Nascido no Huambo, em Angola. Médico de Medicina Geral e Familiar pela Faculdade de Medicina em Coimbra. Médico na Lousã.

2005-02-28

TELAS DO MAR

Bebo contigo as que forem precisas que não as necessárias. A amizade não é necessária é precisa. E essa não tem preço, conquista-se devagarinho como se conquista o fundo do mar. Devagarinho. E como diz a canção eu quero ir ao fundo do mar no corpo de uma mulher bonita. Depois de sentir as convulsões do prazer, de saborear sal do desejo, saboreio as gotas do amor. O poder do feminino. Sei que não estou só. Chega-me à memória o sonho pintado nas telas da vida. O quadro tem cores fortes, quentes, onde predominam os vermelhos, os azulões, os verdes, os amarelos. Do fogo, do mar, da esperança e da terra que é minha, que é tua.
Um dia, de mãos dadas, como se fossemos outra vez crianças, iremos no barco da nossa poesia navegar no livro da nossa solidariedade, à procura do nosso porto de abrigo. Atracaremos devagarinho, de manhã bem cedo, e logo ali, dançaremos a dança da vitória. Bebe mais uma comigo.

2005-02-26

SALSAS, XÁXÁXÁS E RUMBAS

Mermão, a coisa é mais bué de difícil de pensar, e ver, e ficar. Senão olha lá longe e observa a lua a tremer do frio gelado como a loira que te abre as goelas de par em par à procura do sossego de sexta. Ou sábado? Saravá mermão, porque hoje é sábado.Entrei. Sons de longe, entrecruzar de destinos, pensares de tudo e coisa nenhuma. Não me interessa as loiras que banbuleiam juntinho a mim. Só vejo aquela morena, sorrisos mil, salseando trovas do meu destino, xáxáando os tremores do amanhã, rumbando tam-tans do longe.
Cantam, baixinho, para mim o Carlos Fuentes, Miguel Nuñez, Pablo Milanez, Silvio Rodriguez, Eliades Ochoa, Polo Montañez e tantos mais. E pensando poesia bebo o meu copo de branco. Txakolí Eguzari. E o pano desce na noite gelada, no palco de cá.

2005-02-23

A MINHA CERVEJA

Hoje abro as nuvens do apetite e deixo cair a chuva do desejo no mar que nos separa. Apetece-me estar com os amigos porque me sinto como a água da chuva que vai caindo de um céu cinzento e sem grande futuro. Quente e fria. Quente e frio são os gelados que os ndengues sonham como se fossem a suave refeição de quem deserta da fome diária.
Abro a lata de cerveja, loira, gelada, gotejante, estupidamente lembrada nas memórias da minha esplanada cheia de sabores e de cores. Transborda de espumas que crescem para a generosidade do mundo e dos valores que devemos ter. Nunca deveriam ser esquecidos aqueles que amamos. Eles estão entre as coisas mais maravilhosas e de que gostamos de possuir. Não nos importamos que nos massacrem os desejos de sermos sós. Viajamos juntos e ficamos com eles, até, nas ilhas desertas do pensamento.
Percorrem-me as imagens de uma bela mulher, repleta de sardas que sempre imaginei nas maçãs do rosto de quem amo, muito inocente, irradiando aromas de mar, cabelos ondulados ao vento, seios endurecidos pelos desejos da paixão, rolando o corpo em tom de provocação, chamando pelo desejo de ser amada, navegada, possuida, orgasticamente explorada.
Grande preversa esta minha cerveja!

2005-02-20

A FESTA

O sol deixou de estar a sorrir para a multidão que foi, cedinho, bem cedinho aliás, colocar-se na fila de mostrar o seu descontentamento. O vento da esperança soprava mansinho cantando canções de um Abril que está perto. E a noite atracou ao porto da alegria onde a festa se instalou. Ouve-se o traz outro amigo também, do Zeca, e o Adriano a cantar, bem alto, trova do vento que passa. E sabemos novas dos nossos amigos, do Mingas, do Lamartine, do Teta Lágrimas, do Burity, do Paulo Flores e de tantos outros, que juntam a sua voz à nossa voz.
Pego num copo e bebo saudando a felicidade de milhares que esperam pelo amanhã de novo sol, nova luz, novo calor. De quem quer ir em frente. Sempre valeu o esforço para as vitórias dos solidários e para as derrotas dos que pensam passado.
Com os amigos fazemos a noite das cumplicidades.

2005-02-16

DRUMI SONO TAM TORMENTADO

Estou a fugir ao luar. Tento perder-me num momento sem nada perguntar nem nada querer saber. Oiço o meu mar, mar de prata, mar dos meus dias em que a alegria me traz anuviado o sentimento. Subo a claridade da luz lunar e não me esqueço. Consigo olhar as doces horas dos murmúrios que a brisa agita, fazendo-me remontar aos dias eternas serenatas. O mar canta, talvez ao longe soluce, rolando as ondas nas praias saudosas de harmonias.
Jaílza é a inefável canção, vibrante, que se espraia em ondas de musicais harpejos. Morna brotada do azul do mar traduzindo a alegria de estar perto. Vejo o sol descambar na curva de Top d'Coroa, mergulhar nas vagas do horizonte, escondendo-se além, anunciando um drumi sono tam tormentado. O teu cavaquinho embala-me como as ondas da tua melancolia, eco da tua alma, que me convida à nostalgia das terras mais ao longe. Penso e vivo esperando o desembarque no mar da esperança na carta de longe que talvez não chegue mais.
Blimundo é o canto no corpo das raparigas crioulas, nas coxas ágeis dos seus amores, no desejo da viagem que me queima a paixão. É o convite que Rufino Almeida, o Bau, nostálgico e intimista, me faz na ilha de Santiago, no rancho Relax. Com uma sensibilidade instintiva, virtuoso dos sonhos, Bau ensina-me a sofrer com mais calma e rir com mais graça. O mar esse empurra-me para o desespero de querer partir e ter que ficar.

2005-02-14

14 DE FEVEREIRO

Hoje é o dia em que se requer fartura no coração. Olhando no horizonte, abro o olhar de felicidade pela minha namorada, vejo o seu sorriso perder-se num momento na montanha onde o nosso amor se aninha. Ali fico toda a manhã olhando, na pausa da minha viagem, os beirais do meu refúgio. A minha alma cobra o meu sossego. Fico, parado, olhando distâncias, vendo as andorinhas do Sul chegar, alegres, esvoaçando rápidas, cantando canções de amar.
Não percebo se as andorinhas traziam as tuas notícias, as notícias do meu planalto. Fui acordado, com estrondo, do sonho da minha infância, de buganvílias e jacarandás. Quebrado o meu silêncio, dona Esmeraldina, vestida de preto como as andorinhas, caminhando vagarosa como o seu tempo, pediu interrupções.
- O senhor doutor dá licença?
Esperava ninguém, muito menos aquela alma que, todos os dias, calcorreava caminhos e estradas, percorrendo os lugares que desfilavam pelas linhas da sua tranquilidade, dos vales e serras verdes de Vale Maceira e Lousã. Uns quatro mil metros percorridos para vir anunciar as suas queixas iguais de anos. Inutilmente pergunto qualquer coisa e balbuciei um entre pouco convicto. Remava, devagaroso, entre o tempo de espera e o de chegar ao fim. A dona ía insistir nas queixas, quando lhe propus um silêncio e antecipei a resolução do problema.
- Tschhhhhhhhhhhhhhhhhhhh !!!, sussurrei.
- Ó senhor doutor, então não é que vocemecê me parece as camionetas da minha infância quando chegaram a Vale Maceira !
- Mas o que é que isso tem que ver com o que a trouxe até cá ?
- Doutor, há muito tempo, em Vale Maceira a gente vivia do que a terra dava. Tempos difíceis. Criávamos, também, umas galinhas para enganarmos a fome quando elas estavam prontas. Galinhas que andavam à solta pelos campos, pelas ruas, depenicando o que encontravam. Um dia começaram a haver carros na aldeia e tivemos que guardar as galinhas para não morrerem atropeladas. Mas o que mais nos surprendeu foi quando chegou, pela primeira vez, a camioneta da carreira. Julgávamos que as galinhas íam morrer todas. Mas raio de vida, as camionetas quando paravam faziam tschhhhhhhhhh, como fez há pouco o doutor, e as galinhas fugiam, cada uma para seu lado.
- Ó mulher isso era o compressor dos travões do autocarro que quando travava fazia esse barulho , retorqui.
- Era, era senhor doutor. Nã! Ó louvado seja Deus! Então não está a ver? Eu e as minhas amigas pensávamos que era o fim do mundo, pois até as camionetas tinham espanta galinhas .
D. Esmeraldina colocou o seu lenço na cabeça, o xaile pelos ombros, negros como as asas das andorinhas, arribou do consultório e lá foi com a cura dos desenganos, olhos poeirados, descalços, como se soubesse bem a visita que me fez naquele dia. Olhei pela janela e até as andorinhas estavam de espanto, esperando a chegada da Primavera. O tschhh deste dia não me conseguiu estilhaçar o vidro da memória. Aguardo uma carta de longe.

2005-02-12

COMIDA DOS TACHOS

Encosto a cabeça ao travesseiro das ondas do teu sorriso, na cara negra da noite. És um navio ancorado entre garrafas, copos, baralhos, mesas e bancos. A sede de um marinheiro. Desconfio sempre, dos vícios, dos sonos, das velhas batalhas dos bêbados. Na madrugada oiço a voz de sal e de vento e sinto os barcos partirem nos olhos líquidos. A tua mão sossega-me com o carinho de um anjo.
De repente penso em ti nas nevadas serras, tábuas nos pés, deslizando pela vertigem dos brancos sabores refrescantes. A Tábua de Flandres, de Artur Pérez-Reverte, o livro colocado na mesinha de cabeceira da minha taberna da noite, anuncia-me a semente das palavras do meu naufrágio.
Confesso que face à lembrança de te ver junto das aventuras dos dias frios, passeando nas vinhas das Astúrias a soboreares o picante de um prato combinado de batatas, chouriço e pimentos, me desperta um concerto febril de saudade. Efeitos das batatas riojanas, dirás. Mas também sei que não perdoas, com o teu sorriso de marinheiro, embarcares numa feijoada asturiana. E sorris porque sabes que, no antigamente dos tempos, esta feijoada era chamada de "comida dos tachos" ou "comida do povo" e hoje é considerado um prato da alta cozinha de Espanha.
Assim avançamos de ilha a ilha, construindo os nossos jardins suspensos, navegando nos mares que nunca foram muros, olhando as estrelas de mil esperanças, de mil certezas, olhando o azul safira do oceano que nos leva para lá da linha do horizonte, aos jardins da nossa infância, às flores dos nossos encantos. Há uma ideia errada e vaga de que os sabores mais refrescantes e exóticos do nosso sul não vivem com a nossa intimidade. Espero a tua chegada.

2005-02-08

OS HERÓIS

Já o meu pensamento voava para outros carnavais, quando alguém me colocou um rádio, um pequeno rádio de pilhas, debitando decibéis que nem menino chorando com dores e fome. Ó céus , pensei, como é possível sobreviver a esta terça feira, 8 de Fevereiro de 2005 , e estar aqui fechado a ouvir, dores de cabeça, tosse, febre, dores no corpo, dores nas pernas, dores nas costas, dores no peito e...
Tantas dores e ninguém me fala na dor de alma. De não te ter comigo na esplanada, a ver o zulmarinho cantar de mansinho "quis saber quem sou/ O que faço aqui/ Quem me abandonou/ De quem me esqueci ".
E perco-me para lá do tempo ouvindo os tam-tans de alegria da minha África, as cores das suas vestes, os sorrisos do seu rosto, as danças do seu corpo, os apitos do fôlego a cantar alegria. O carnaval que já lhe chamaram da vitória. Como a águia real que sobrevôa as emoções de um povo vestido de vermelho, procurando os golos que o façam subir ao olimpo de uma luz benfica.
Os meus heróis vieram hoje brincar comigo no desassossego de um sonho vivido com paixão. Não eram o Fantasma da ilusão mas o Major Alvega que me levou de volta às brincadeiras de menino. E lá estavam o Bufalo Bill, o Mandrake, o Kansas Kid, Capitão Marvel, Texas Jack e tantos outros. Com os da minha rua, do meu bairro, a fingir, por um dia, que o céu podia esperar. Nós também sabíamos ser heróis.
Mas o mar não me deu tua voz, e por isso acordo do sonho, estremeço um pouco e empurro o whisky pelas goelas abaixo. No rótulo da garrafa está um barco que me leva a navegar como se fosse a última viagem de Francis Drake à procura de um tesouro enterrado na minha alegria.

2005-02-06

MIRA B.

Sei, mermão, da tua presença, no teu descanso, nas montanhas geladas de um tempo vivido. Vinte e quatro horas nos separam de uma pura saudade de um tempo que chegou abundante de palavras e estórias que se ajustam à eternidade futura. As minhas mãos sacodem a poeira dos anos queimados, de saudades fundas, de respostas dos nadas que se aprendem.
Uma luz tropical, húmida e densa, desceu pelo altíssimo tronco das palmeiras plantadas nos planaltos dos meus sonhos, contemplando os olhares ternos dos silêncios. Também sei, mermão, que partiste para o Sul no desejo de hoje, sentado numa esplanada, entre palmeiras e pássaros de alheados olhares de quem já viu tudo, afagares as loiras de segredos terríveis.
Te conto só. Lembro-me de ter estado em Barcelona à procura do insólito, de um vento que me levasse de regresso à minha infância. Como Juan Miró, também admiro os jogos de água na Fonte das Três Graças na Plaça Reial, vejo dançar a sardana na Plaça de Sant Jaume lá pelos finais da tarde, os pares anunciando imagens soltas, frases, cheiros, coragens. Caminho pelo Passeg de Gracia, bebo uma e outra ainda no Moll da Marinha, no Port Olimpia, e acabo a noite a percorrer os bares, restaurantes e discotecas, e a citar Goethe, "a noite é metade da vida. A metade melhor ".
A cidade de Gaudi, Picasso, Dali, Tàpies, Miró, fascina-me pela criação cantada nos romances, nas pinturas, nos monumentos, no amor. Ouvir jazz no histórico bar Jamboree é um hino à cultura, à esperança. Penumbra, muito fumo e boa música, vencem as sombras do passado e ajudam-nos a pensar nos beijos trocados na noite.
A simplicidade das soluções da velha Barcelona encantam-me e fico preso às telas do imaginário vivido percorrendo as ruas e visitando a Casa Milà, La Pedrera, a Casa Batlló, a Sagrada Família, o Parque Güel. Subo a Rambla, rio não seco inundado de mundo, rio de gente, que corre desde a Plaça de Catalunya até ao mar, e sorrio. Nas ramblas vende-se o Sul. Aves exóticas, jibóias, flores e peixes tropicais.
À noite, mais uma noite, onde a Lua é mais brilhante, subo a montanha, sento-me ao balcão do Mira B., um bar que banha e lava de luz a cidade dos suspiros poéticos. Um verdadeiro filme de Pedro Almodôvar. Ali se constroem as madrugadas, esperando amanheceres diferentes, sonhando com a conquista de um futuro, os silêncios das respostas, convicções firmes de abraços forjados nos longos beijos trocados com os amores ao povo meu.
E assim mesmo, vejo-te, mermão, nas montanhas geladas aqui tão perto, a abençoar a noite, semeando esperanças na nossa terra quente e húmida, nos planaltos perdidos para lá do Mediterrâneo. Bebe uma birra comigo e exalta a amizade.

2005-02-01

JOAQUIM FUMAÇA

Nas longas serras, entre a Estrela e a Lousã, estendem-se harmoniosos os caminhos tranquilos das estradas escravas. Os olhos dos homens humildes adormecem em temores vagos de um tempo de impaciência.
Joaquim Fumaça, 91 anos de idade, seco de músculos, corpo lavrado pelo sol pleno, a respirar, pouco a pouco, o ar envenenado pela vida, sentou-se, pela primeira vez, em frente do senhor doutor, curvado pelos abismos imensos que a doença provoca. Homem de muitas palavras, movimentos, sangue, nervos e vontade, não teve tempo de ir à escola. Calcorreou os caminhos entre Santo António das Neves e a Pampilhosa da Serra fazendo e vendendo carvão. Numa noite, quando o orvalho se perdeu, a neve não existia, os seus olhos viraram estrelas, colibris feitos poesia, escondeu os fantasmas da fome, do frio, da sede, e fez-se à distância. Nessa noite no cortejo das estrelas, lua gotejando procuras, Joaquim Fumaça, caminhou pela triste imensidade da solidão, rolou no espaço intérmino, e rumou a Lisboa.
Triste por deixar a sua flor de pétalas de ternuras, chegou à miragem que se chama mar. A guerra com estrondo fazia chegar os sons do medo. Medo onde, em cada esquina, os sentinelas vigilantes incendiavam olhares, prendiam desejos de liberdade, substituiam consciências desesperadas, transformavam a vida em guiões de desespero e em gritos de morte.
O pó do carvão, do trigo, do centeio, do milho, do cimento, em trânsito por Lisboa, trazidos de África para a Alemanha nazi, escureceu-lhe o respirar, a força escondeu-se nos silêncios da doença, as palavras quebraram-se com a tosse do pó, dos cigarros, do álcool, das mulheres. Regressou à sua terra onde não mais sentiu o cheiro da seiva dos pinheiros.
E hoje, numa manhã de Fevereiro, na minha frente, punhos cerrados, veias endurecidas, olhar risonho, respiração maralhada de espasmos, ainda me fala de liberdade, fraternidade, igualdade. Recorda as camionetas fazendo fila entre Santa Apolónia e o Terreiro do Paço e que já não turvam de sangue, suor e lágrimas as águas do seu Tejo, como nos idos tempos de 1945. Com elegância, ainda me faz poesia, dizendo-me que "nunca mais da guerra nos livramos, mas a fome já matamos ".
Ti Jaquim Fumaça, pediu para se deitar, fechou os olhos, entrou numa plúmbea tristeza, iniciou a sua viagem sem regresso, subindo vagarosamente a serra, silenciando a terra adusta. Uma insondável mágoa percorreu o meu rosto enquanto ao longe as nuvens álgidas se escondiam no horizonte das montanhas geladas.