Tabanka do Huambo

Saber compartilhar cumplicidades, na vida, como forma de cultura e de ciência. Cumplicidades de vivências com os amigos numa abordagem vital para a sobrevivência do Planeta Terra.

Nome:
Localização: Coimbra, Portugal

Nascido no Huambo, em Angola. Médico de Medicina Geral e Familiar pela Faculdade de Medicina em Coimbra. Médico na Lousã.

2005-01-29

HORA DO LOBO

Pasme-se. Aqui estou eu. Completando os caminhos do Norte. Sentindo o medo de ter medo. Na noite gelada dos silêncios. ouvindo o piar dos mochos cantando louvores à Lua. Os meus pés escolhem as pedras do caminho semeado nos xistos da serra. Todas as sombras são poucas. Nem preciso dos olhos para querer chegar ao fim da noite escura.
Na tasca do ti Valdemar, encostado à parede caiada de esperanças e desilusões, bebo mais um copo de vinho. De um tinto feito pelos tentáculos da vida de um povo arrebatado à serenidade do passado. Vinho sem corantes nem conservantes, parece afirmar a televisiva senhora colocada por cima do balcão de madeira. Numa das mesas, Manel Chanquinhas, Zé Nestor, Salta Pocinhas e Zé Campeão jogam o jogo que os separa da mais recente ausência. A sueca.
- Valdemar, mais uma picheira desse teu tinto. Parece vinho de missa, carago!
A cinza acumulada nos cinzeiros das mesas faz bailar a sombra dos fumos aspirados à procura de um final sem regresso.
Lá vou olhando a noite, o vento irado, a brancura do gelo demoníaco. Paro. Os meus olhos fixam outros olhares que me cercam. Vermelhos de ódio ou admiração, nunca saberei. Hipnotizado diante da beleza da hora do lobo anunciando a batalha das trevas. Acendo um cigarro. O fumo aproxima-se do céu negro sem luzes. E o lobo abandona as duras fráguas, correndo para as montanhas que aguardam a sua sorte fatal. Inverno no Marão.
A minha carne em fogo aceso deseja a fonte para o doce banho das esperanças afogadas pelas últimas chuvas. Queimadas pelo último cigarro, na noite de Trás-os-Montes. Enganado num exílio manso, sonho com os mares de todo o ano e o sol que aurora nas montanhas que abraçam os destinos.

2005-01-23

SONHOS DO SUL

A lua ilumina o som dos batuques que levam a poesia para bem longe desta Coimbra fria, quase gelada. Ao luar os teus cabelos de marfim sugerem beijos sensuais como os poemas do sul cantando a rota das canoas. Talvez este som do rio me fustigue os teus lábios túmidos cheios de bela virilidade mordendo a nudez de um cacho de uvas. Como são belos os nomes dos rios da minha terra!
Nos Prazeres da Carne, contando estranhas belezas das gentes da minha terra e das suas histórias, encho as grossas veias que mergulharam no vasto e coleante corpo do Zambeze de um imenso líquido de vida. Todo o nosso tempo cantado pelos capitães de areia do nosso tempo, embarcados nas canoas da ilusão, ajudados pelos sonhos de Jorge Amado e abençoados por Imanjá nas praias da Baía. Esse tempo que nos diz que a noite nua é fremente, amante, tempo conquistado a sangue e terra, na descoberta palmo a palmo de mais sol.
Perto do final, antes do silêncio ajoelhado pelas lágrimas que o cacimbo tenta esquecer, os uivos do vento adormeçem-me o corpo transido, contente com as dádivas de Baco que me trazem alegrias e tristezas ou nada disso. Mudo o rumo do caminho longe e bebo mais uma caipirinha. Gelada como o tempo de ontem. Com os amigos. De cá e de lá. No fim da noite tu dizes-me para não te chamar bela mas simplesmente mulher. E pela noite fora as ondas do nosso prazer enfeitam com encantos mil as linhas do teu corpo, amor.

2005-01-21

AMOR PROIBIDO

Levantei o búzio do chão, a espuma das ondas fazia pinturas de amar nas telas dos corpos nus deitados na areia, o mar acariciou os teus seios e lá longe, dentro do búzio, ouvia chamar pelo mar. De tanto mar sonharmos, a água borbulhou nas nossas bocas, o vento juntou os nossos corpos por detrás daquele muro da amizade, começamos a olhar o sol e vimos o brilho da terra. Cansados, depois do amor, sentamo-nos nas pedras silenciosas pensando que a nossa felicidade podia ser o ribombar de trovejão e faísca das calemas da nossa ilha.
A música de um violão penetrou no nosso tempo fazendo-o voltar atrás, e no mais secreto do areal os teus peitos desabotoados pediram amores que se começaram a acariciar, escondendo-se em cada um, cada vez com mais raiva. Até explodir em frágeis sons de quissange, de recordações. E no final os nossos corpos secaram com a terra vermelha e amarelada da nossa sagrada esperança. Hoje mergulhei na felicidade de um fazedor de vontades de monandengues.

2005-01-19

POETAS

São fáceis de encontrar os meus amigos. Vejo-os junto do mar a olhar o futuro. Para além daquela linha onde o sol se esconde. E deixo na areia um poema solto ao vento. Que nos teus passeios pela praia o encontres e te lembres que os poetas são eternos. E hoje, 19 de Janeiro, Eugénio de Andrade encontra-se com os amigos. Aos 82 anos de idade.

No Stars

Hoje,
é daquelas noites
em que não há estrelas,
há só o que não consigo ver.
Porque está frio
aqui.
Sei-me longe,
incontornavelmente.

Hoje
é daquelas noites em que não se dorme mais
nem menos.
Merda de vazio.

A. RITA

Uma canção minha perde-se no tempo. Tudo era fácil se ao sonhar, na dança da noite, os meus sonhos não se apagassem. Não me importo de chorar.

2005-01-18

ENORME PEDRO

Desculpa só. Desde segunda que cá no meu kimbo é festa todos os dias. Foi só comprar na loja do tio Belmiro, cá da nossa tabanka, umas fresquinhas e comemorar. Os 110 metros quadrados do kimbo viraram salão de festa. Nem quando os kurikutelas foram campeões de futebol. Olha lá. Então não é que felicidade de um angolano virra farra em todo o mundo. O mano Pedro aguentou aí a sofrer dois anos. Opera, trabalha ginásio, se machuca, opera, trabalha ginásio, se machuca, opera, trabalha ginásio, e zás. Parecia gazela nas anharas do leste. Corre, no seu jeito desajeitado, chuta forte e grande golo. Enorme Mantorras. Todo o povo sentiu felicidade, se sentiu menino quando soube que as estrelas são do povo, como diz na canção. Abraçou quem o amou e todos choraram. De alegria. É disto que o meu povo gosta. A história da sua terra também é feita de dor, choro, alegria e festa, mas é a nossa eterna namorada. Que grande golada desta última loira. Parece palanca negra a olhar o infinito dos mares.

2005-01-16

CABEÇA DE BURRO

Viajo para o norte. O frio aperta mais e mais. Parece noite passada no morro do Lépi. Ali mesmo, em frente, o mar se enfurece. A-Ver-O-Mar, bem juntinho à Povoa. Do Varzim. Sem loiras. Desapaixonado. E um frio e um vento que até parece que os deuses da vida se zangaram. Com o teu zulmarinho, mermão. E cadê as loiras? Nem vê-las. Depois de bem comido no Sopa de Peixe, à noite, entro no Marinheiro. Barco em terra. Bem verdadeiro. Imediato e marinheiros. A rigor. Sento-me à proa. Só. As gaivotas não me vieram cantar canções de esperança. Voaram para outros mares. Os do Sul. Peço um espada grelhado e apetece-me beber um Cabeça de Burro, tinto. Do Douro, dos vinhedos do baixo Corgo. Terra de meus pais. Fazendo, o nome do tinto, lembrar-me tantas cabeças e tantos asnos, equídeos. A noite vai saindo de mansinho.
Levanto-me, na manhã do dia seguinte cheio de esperança que o mar me dê novas dos amigos. Nada. Só oiço o silêncio e a revolta das ondas. Das gaivotas nem notícias. Caminho, devagar, à procura de um sossego virgem. Tourygalo, um nome sugestivo. Cabeça de galo, corpo de toiro. Entro. Peço um "tournedó" de carne e bebo. Bebo mais uma e outra ainda. Frescas. Estupidamente geladas. Hoje não posso regressar à paz. Amanhã estarei com eles. Sentados, ouvindo o zulmarinho, bebendo mais umas. E outras ainda.

2005-01-12

CAFÉ FRANÇA

Tinha deixado o deserto para trás. Cheguei a Ouarzazate, cidade com os suas alcazabas de puro estilo berbere, onde me refresquei na casa de madame Michelle . Tinha pressa em chegar a Marrakech. Cidade das ilusões e realidades. Os sonhos de chegar à Praça da Morte eram intensos. Ali, criminosos e rebeldes, tinham sido decapitados por ordem dos sultões. De repente, sem dar por mim, sinto uma magia especial, exótica, colorida, cheia de cenários e figuras de contos orientais. É fim da tarde e cheguei à Praça Jemaa El-Fna. A que foi da morte e hoje transborda vida. Subo as escadas do café França, arranjo lugar na esplanada mais perto do céu, sento-me, puxo as cadeiras para os amigos. Mermão hoje não podemos abraçar as loiras. Pede-se chá com pinhões. E ficamos a olhar o sol a deitar-se, de mansinho. Na praça olhamos esse grande teatro, onde se vêm míticos encantadores de serpentes, amestradores de macacos, acrobatas, saltimbancos, mágicos, arrancadores de dentes, aguadeiros, cartomantes e contadores de estórias.
A noite chegou e saímos para esse grande restaurante ao ar livre, que é a Praça. Repleta de tendas, grelham-se "brochettes", frita-se peixe, cozinha-se cuscuz. Mermão temos que comer em pé. A cidade fumega odores intensos.

2005-01-11

CHÁ NA ESPLANADA

Aceito o convite. Do deserto. Estou ali sentado na duna. Bem alta, por sinal. A noite varre-me suavemente e um frio, fresco, penetra-me no corpo, com doçura. Aguardo a chegada do sol. Para trás, uma paixão louca, Marrakech. Como as serpentes, Marrakech enfeitiçou-me. Nour, um irmão das viagens, marroquino, fala-me da frescura da manhã e da vida que há no deserto. Pela frente o Sol levanta-se, majestoso. Enorme. Anuncia os dias da vida. Silêncio. Só se houve a canção da areia, da raposa do deserto, dos cânticos a Alá. E como a vida é tristeza. Do rádio do jeep, a notícia, triste. Mais um navegador do mar salgado do Sahara morre. Meoni. A fazer aquilo que gosta. Navegar com a sua mota, nas dunas onde me sento.
Caminho devagar. Duna abaixo. Ao meu lado, Nour estende-me a mão. Shukran , agradece. Hoje entendi a mensagem do deserto. Somos todos iguais.Entramos para o jeep, aceleramos deserto fora. Era lindo ver o ouro da areia misturado com a côr de fogo de um sol que nos aquece. De repente vindo do nada, no meio daquele deserto, uma tenda, uma rapariga, berbere, linda como o nascer daquele sol, uma mesa e um chá para os amigos do deserto.
Shukran, disse eu. E os navegadores do deserto já vão a caminho de Dakar. Tombuctu fica a 60 dias deste local. Em caravana. De camelo.

SUSAN SONTAG

SUSAN SONTAG , escritora norte-americana, falecida em 28 de Dezembro de 2004, com 71 anos de idade. MESMO COM CANCRO E OUTROS SOFRIMENTOS, SONTAG GASTOU O TEMPO A FAZER ESSENCIALMENTE AQUILO QUE QUIS: ler, pensar, escrever, viver. A sua biblioteca.... Respeitada, mesmo quando era polémica, difícil evitá-lo quando se é sério e estão em causa problemas morais. Susan nasceu em Nova York. Ficou órfã de pai aos 5 anos de idade. A mãe era alcoólica. Aos 8 anos Susan lia obras complexas e completas, aos 14 fez uma excursão a casa de Thomas Mann. Aos 15 um professor achou que ela não estava a fazer nada no liceu e graduou-a. Foi para a Universidade, primeiro em Berkeley, depois Chicago. Casou com Philip Rieff, professor desta universidade. Aos 19 anos tem o seu filho, único filho, David. Licenciou-se, fez dois mestrados, iniciou um doutoramento. Em 1958 foi para Oxford e iniciou vida nova, de boémia, de saídas. Doutorou-se, voltou aos EUA, divorciou-se e foi com o filho viver para a sua NY, Manhattan. A sua verdadeira adolescência começou aos 26 anos. Deu aulas na Universidade de Columbia. Tempestade de sentimentos, Sontag nos anos 60 vai ao Vietnam e como "cidadã do império" escreve Trip to Hanoi onde condena a brutalidade praticada pelos Estados Unidos naquele país. A seguir vem um texto laudatório sobre Cuba. Anos mais tarde disse a Fidel que não respeitava os escritores e pediu-lhe que libertasse o poeta Heberto Padilla.Faz declarações que põem a América em estado de choque. Como "A América foi fundada sobre o genocídio "; " A Raça Branca é o cancro da história " e após o 11 de Setembro, num curto ensaio no New York, nega que os terroristas dos aviões tivessem sido cobardes e descrevia o atentado como consequência de determinadas alianças e acções americanas - em lugar de uma ataque ao modo de vida americana, à liberdade, como pretendia o Governo. Tinha uma biblioteca com 15 mil livros. Quando lhe pergutaram se os tinha lido todos respondeu que sim, estes e muitos mais. Carlos Fuente conheceu-a no início dos anos 60 e achava-a fenomenal. Ao contrário de outros intelectuais, ela não se limitava a passar pelos assuntos, ou pelos lugares.

2005-01-10

OS DA CIDADE E OS DO MATO

Confesso que sou um homem do mato gostando imenso das cidades. Principalmente quando me apaixono por elas. Aliás sou da opinião que as cidades não são bonitas nem feias. São como as sentimos.Mas sempre vi a gente da cidade com uma visão social crítica. Fosse na passagem de ano, made in colónia, fosse noutras festas onde se tirava a naftalina e os bolores das vestes domingueiras. Detestava as leituras de algumas bibliotecas onde existem livros defensores de um sistema indefensável, para se mostrarem aos do mato como se era mais elegante e mais esperto que não inteligente. Mas as minhas festas, as verdadeiras farras, que também as tive na cidade, eram na sanzala, no mato. Com as pessoas sem máscaras. Verdadeiras, às vezes sofridas, e autênticas. Solidárias.
Lembro-me de uma dessas farras no Cazombo onde falávamos, descomplexadamente, dos da cidade. Críticas aos da cidade por serem homens e mulheres transparentes, quase sem cor, nescessitando de pinturas, que não para a dança ou para efeitos guerreiros, mas para disfarçarem a vergonha, se a tinham, do que faziam e não faziam.Os da cidade com as suas barrigas de jinguba, que largavam o seu arroto e o seu punzinho de manhã, transbordantes de felicidade e de ostentação. Que criticavam tudo e todos. Tinham mulheres à imagem das mães, imaculadas, sofridas, silenciosas, resignadas, para todo o serviço. E se serviam das do mato. Que entravam nas suas camas sedentos de sexo mas impotentes pelo Wisky e cerveja bebidas nas noites, que chamavam tropicais. Envergonhados quando na noite anterior tinham sido surpreendidos a beijar o amigo. Que criticavam as mulheres, ficando chocados, por elas, às vezes, se distraírem e também soltarem um arroto ou se terem "descuidado", à sua frente, enquanto colocavam a gravata, logo pela manhã. Era proibido para elas terem estes comportamentos embora eles arrotem e ressonem a vida inteira. Não lhe admitiam terem amor quanto mais amantes. São os da cidade que vão para os copos com os amigos quando se casam, nascem os filhos ou ganha o seu clube favorito. No futebol, único desporto que conhecem além da malha e do chinquilho. Cheios de impossibilidade de conforto e de ideais de superioridade.
No mato procurava pessoas e sou homem para acordar com alguma lucidez sem me perder com o passar dos dias. Mas como começo a ter barriga de jinguba, vivo na cidade e já há muito que me descuido (como sou rico chamo-lhe aerofagia e aerocolia, só os pobres é que arrotam e dão o seu punzinho ou peido, depende da intensidade), os meus filhos fizeram o favor de me oferecer o DVD, Shrek 2. E qual não é o meu espanto quando reparo que uma das rubricas do DVD é "Aprenda a Arrotar como a Fiona ou o Shrek". Confesso que já estou a treinar.Aconselho o DVD a alguns puristas porque lhes vai aliviar algumas más disposições do tubo digestivo. E escusam de tomar Omeprazole.

2005-01-09

SERENATA

Peço mais uma loira. Sentado no Tradisson & Morabeza, vejo a noite espraiar-se, suavemente, no Mindelo. Na Praça Nova escutei umas kizombas, umas mornas, umas coladeras e vivi um momento saboroso e sublime. Os kadengues dançavam, frenéticamente, funaná. Subi a rua. Devagarinho. O som da música misturava-se com o som do mar. Entrei no Sodad, subi ao terraço e pedi mais uma loira. Cristalina, fresquíssima, cheia de transparência. O copo cheio de gotas refrescantes como cristais de neve lá da minha serra. A loira respira com sofreguidão e faz-me sonhar. Sobre um amor construido ao som do clarinete do maestro Luis Morais. Tempero crioulo, serenata fascinante, luar com sabor a mar. Ti Lije sentou junto a mim e tocou uma serenata d'sodade. Loucas são as noites do Mindelo. Senta aqui mermão e sorve o aroma precioso e deixa-te, também, envolver por esta loira deslealmente bonita.

2005-01-07

FUNANÁ

O puto fazia 18 anos. Miguel tinha acabado de aterrar em África cheio de sonhos, a independência da liberdade no pensamento, o começar de um canto novo. Ao fim da tarde pediu uma loira e ficou a olhar o mar azul turquesa que banhava as areias quentes de Santa Maria. As tranças de um cabelo negro cruzaram-se no seu caminho. Pareciam as ondas de um mar onde havia de mergulhar o seu corpo. De mansinho. Como acontece em todas as primeiras vezes. As mãos da crioula Milu afagaram o seu corpo numa emoção de menina bonita. Os olhos negros da bailarina de funaná procuraram os seus olhos azuis e falaram de um amor que só os deuses entendem. E dançaram toda a noite numa cumplicidade que só os amantes conhecem. No fim, um grogue interrompeu o acelerar de um coração que batia por um desejo não cumprido. E de madrugada saiu pelo porton di nos ilha, sorrindo.
E Miguel ouviu falar de Zeca di Nha Reinalda, Zé Semedo, Ginho, Daduche, Quim Alves e Nuno Patrício. E ficou a saber que Funaná é Sabi.

2005-01-06

O POETA

Desculpa entrar assim no teu café e ficar a olhar o horizonte. O frio corta-me a vontade de chorar. Não consigo mais ver o que os deuses fizeram nem consigo perceber o porquê de tanta revolta. Mas bebendo umas loiras a minha tristeza voa para lá das Canárias. Na saudade de uns tempos bons. E sento-me, com os amigos, no Poeta, café de muitas cumplicidades. A cidade da Praia continua linda. E aqui estou ouvindo soprar o vento, bailando com o pensamento ao som de um violão, pintando os quadros da morabeza com as cores do fim do dia. E sinto a solidariedade dos homens bons. Ildo Lobo, de mansinho, puxa uma cadeira, pede uma bem fresquinha e conta e canta, para nós, as andanças dos emigrantes. Que bom é ouvir a balada com cheiro à terra. Renato Cardoso escreveu Alto do Cutelo e, mermão, meus companheiros, o tio Ildo falou baixinho para nós ouvirmos. Escutem agora de mansinho.

No alto cutelo
Cimbron dja ca tem (dja seca)
Raiz sticado
Djobi agu c'atcha (dja seca)
Agu sta fundo
E omi ca tral (dja seca)

Mudjer um simana
Sé lume ca cendi (na casa)
Sés fidjos na strada
Só um ta trabadja (pa dozi mirés)
Marido dja dura
Qui bai pa Lisboa (contratado)
Contratado (contratado)
Pa bai pa Lisboa
É bendi sé terra (metadi di preço)
Ali el ta trabadja
Na tchuba na bento (na frio)
Na Cuf na Lisnave
É na si Pimenta (explorado)
Explorado(explorado)

Mon d'obra barato
Pa más pui trabadja (servente)
Mon d'obra barato
Barraca sem luz (comida a pressa)
Inda mas enganado
Cu sé irmon branco (enganado)
Explorado

Ma um dia q'um vra pa terra
Monti Gordo e Malagueta

Nhos tem qui dan agu
Cu força na braço
Conciénça é di mi
É mi qui trabadja
Terra e poder é pa mi
Cu cimbron na cutelo
Minino nta tchon
É barco na porto

Ai nós terra nós terra
Ai nós terra nós terra
(nós terra)

Na sabura de um som de amor, a verdade de uma paixão que só os poetas entendem. Agora saio eu de mansinho e a lágrima corre teimosa a abraçar uma causa de cultura.
Kandandus, amigos

2005-01-05

HISTÓRIA DE RESPONSABILIDADES

Era uma vez um grupo de pessoas que se chamavam: NINGUÉM, ALGUÉM, QUALQUER UM, CADA UM, TODA A GENTE.
Havia uma tarefa muito importante a realizar e TODA A GENTE tinha a certeza que ALGUÉM a faria, QUALQUER UM a poderia ter feito, mas NINGUÉM tomou conta dela.
ALGUÉM ficou furioso, porque se tratava de uma tarefa que cabia a TODA A GENTE. CADA UM pensou que QUALQUER UM poderia fazê-la, mas NINGUÉM pensou que TODA A GENTE se esqueceria de a fazer.
O resultado é que CADA UM acusou ALGUÉM, dado que NINGUÉM fez o que CADA UM poderia ter feito.

Autor: NINGUÉM

2005-01-04

CRÓNICAS DE LONDRES

O outro livro, Frutos da Filosofia, de que se tem vendido, diz-se milhões de exemplares, é uma exposição semi-médica e semiobscena dos meios de impedir a gravidez! Com um impudor estupendo, este folheto que a Inglaterra inteira está neste momento devorando começa por dizer que nada mais desagradável do que ter filhos; em primeiro lugar, que é um terrível encargo individual, em segundo lugar, porque o aumento da população, em desproporção com o aumento dos meios de subsistência em Inglaterra, pode trazer a ruína do país. E daí segue-se, num estilo bem trabalhado e técnico, uma série de receitas medonhas para esterilizar a mulher, ou pior ainda...
A gravidade do facto é que este livro vende-se aos milhões de exemplares e que a avidez do público mostra que ele está convencido da sua utilidade e deseja aprender os seus processos. Os autores, ou antes os reprodutores, porque o livro é quase todo composto por um especialista americano, foram condenados; mas o escândalo e a publicidade do processo tiveram apenas como resultado dar ao livro uma fama insensata e enriquecer os editores, e espalhá-lo de tal modo que é raro encontrar um sujeito que não o tenha no bolso da sobrecasaca, como um manual cómodo e à mão de desmoralização e de deboche.

Eça de Queiroz - Crónicas de Londres
Crónica datada de 4 de Julho de 1877

2005-01-02

LÍCHIAS

Apetece-me hoje afirmar que o tamanho às vezes não conta. Lá fomos os dois atraiçoando o tempo "jantar chinês". Vou sempre que me apetece ou me convidam Descobri no Fu-Hua que consigo comer com pauzinhos e que gosto de chop suey. Às vezes camarões fritos com alho, em prato de ferro, também é um manjar dos deuses. Como gosto das loiras, acompanho sempre as refeições com várias Tsing Tao. Chinesices. Da última vez foi uma japonesa que no seu primeiro trago se mostrou amarga, compensado com um final cheio de aromas e um rasto de citrinos. Líchias, disse-me a minha filha. Não, foi mesmo um tom de limão que me ficou para partilhar com os amigos.
Saporo é uma morena dedicada e delicada e que teve que se haver com um corona mascarado de simplicidade e que nos leva nos sonhos de poeta das montanhas a recordar Cachoeira e São Félix. Baía de Jorge Amado, São Salvador que nos lembra Gabriela, com quem vadiamos nas praias onde os nossos corpos fazem desenhos, verdadeiras iluminuras pintadas de sal e espuma.

DAVID BERNARDINO - Médico angolano

CURRICULUM

David Manuel Mendonça de Oliveira Bernardino,
nasceu no Huambo, Angola, a 23 de Março de 1932. Fez os estudos primários e secundários no Huambo e Lubango. Cursou Medicina em Lisboa, 1958.
Cursos de Medicina Sanitária e Medicina Tropical, Lisboa, 1959;
Mestrado de Saúde Pública, Amsterdam, 1971;
Curso de Planificação de Saúde, OMS, Dakar, 1976;
Curso Regional de Demografia, CELAD, Costa Rica, 1985;
Médico dos Serviços de Saúde da Companhia dos Diamantes de Angola, 1960-1970;
Criação e Manutenção do 1º Centro de Saúde de Angola, Huambo, 1971-1975;
Chefe de Departamento de Saúde Extra-Hospitalar, Luanda, 1976-1977;
Delegado Provincial de Saúde do Huambo, 1977-1979;
Delegado Provincial de Saúde do Kwanza Norte, 1980;
Coordenador do Atelier sobre Cuidados Primários de Saúde nas Áreas Rurais, Luanda, 1981;
Assistente, em tempo parcial, de Saúde Pública da Faculdade de Medicina de Angola ( 1981-1989 ) e Professor Associado ( 1989-1992 );
Consultor da OMS para o Curso de Planificação Sanitária, S. Tomé, 1983;
Director do Departamento de Investigação de Sistemas de Saúde do Instituto Nacional de Saúde Pública - INSP, 1986;
Médico Chefe da Direcçaõ Regional do INSP no Huambo, 1987-1992;
Consultor da OMS/FAO para a avaliação do sisitema de apoio a Cabo Verde, 1987;
Último trabalho científico publicado - Informação sobre a situação do bócio endémico no Planalto Central de Angola, dados colhidos no primeiro semestre de 1992, Acta Médica Angolana, Vol 9, Nº 1, 1993

ACTIVIDADE CÍVICA

Membro do Movimento de Unidade Democrática Juvenil, príncipio da década de 50, Lisboa
Testemunha de defesa no julgamento de Agostinho Neto no Porto, 1955
Presidente da Casa dos Estudantes do Império, Lisboa, 1959
Membro do Coro da Academia dos Amadores de Música, Lisboa, década de 50
Membro Fundador do Movimento Democrático do Huambo, 1974
Membro do MPLA
Membro da Associação Angolana do Ambiente
Membro do Comité Provincial do MPLA para o Huambo, 1971-1981
Fundador e Director do quinzenário " Jango ", 1982

DAVID BERNARDINO - Pioneiro dos Cuidados Primários em Angola

O comboio de casas alinhadas como colmeias, paralela às oficinas do Caminho de Ferro de Benguela - CFB, anuncia-nos o bairro do Caminho de Ferro no Huambo, Angola. Amarelas, rodeadas por lindas bungavílias eram entrecortadas pelo " triângulo " onde nós os cadengues, putos, alguns requilas, vínhamos apanhar boleia das máquinas a vapor, enormes (chamavam-se Garrads, havia ainda as Montanhas e as Nonas), para o outo lado da estação. Do outro lado da linha o cinema Ruacaná e a pastelaria Kambo eram o ponto de encontro dos fins de tarde onde nos deliciávamos com as conversas e as brincadeiras próprias de quem amava a sua cidade. O "Tau Tau", Ernesto Lara Filho, aparecia a desafiar-nos por conta do nosso amor ao Ferrovia, Kurikutelas como lhe gostávamos de chamar, e a ensinar-nos como era a nossa Angola. Aí começaram os nossos sonhos.
Todos jogávamos à bola atrás do triângulo, num campo que se situava na fronteira do Bairro do Benfica com o do CFB. Jogos de campeonato. Uns descalços, os negros, outros com sapatilhas Sanjo, os brancos. Mas amigos inseparáveis. Unía-nos o mesmo sentimento de "ódio" ao Mambroa, ao Sporting e à Caála. E à injustiça e à descriminação. Éramos todos do Benfica de Lisboa e líamos, em conjunto fraterno, o jornal A BOLA que devorávamos da primeira à última linha. Aí aprendemos a questionar os mais velhos com perguntas simples mas de difícil resposta. Lembro-me de algumas. Se Angola é Portugal porque é que o Benfica não joga com o Ferrovia ou Se Angola é Portugal porque é que a Volta a Portugal em bicicleta não passa no nosso Huambo?
Anos mais tarde a Taça de Portugal deu um salto até à nossa terra. Aí tivemos o previlégio de ver jogar, também, a nossa Académica de Coimbra, o Manuel António, o Rui Rodrigues, o Gervásio, os manos Campos. Estávamos com eles mas fizeram o favor de empatar ( 1-1 ) com o Mambroa e adiar a decisão de os eliminar. Uma tragédia. Maka entre os do CFB e os de Cacilhas. Pontapés, murros, arranhões, cabeças partidas e algumas nódoas negras e lá estava o nosso médico, David Bernardino, para nos tratar das mazelas do corpo e aliviar o espírito de mais ódios. Com ele aprendemos como era linda e bela a nossa Angola e as suas gentes. O David era encantador para as crianças, entrava facilmente no seu imaginário e elas achavam-no divertido e bom.
Mas quem era este médico, que tratava da mesma forma os angolanos e os portugueses? Nascido no Huambo em 1932 aí iniciou a sua formação como homem. Fez os estudos primários numa escola privada na casa comboio da Rua Castro Soromenho, propriedade da família Dáskalos, cuja direcção era pertença da sua avó. Por esta escola passaram os seus irmãos, a Carmita, o Zé, o Luis e a Morena. Aqui adquiriram hábitos de estudo, de comportamento e de análise que vão marcar os seus futuros.
A infância e a juventude são passadas com algumas dificuldades. Aos onze anos levanta-se de madrugada para ajudar o pai na padaria e no conserto de bicicletas. À noite colaborava também na padaria pesando farinha e pão. As suas brincadeiras eram no quintal de sua casa com os filhos da lavadeira, comendo com eles peixe seco e pirão.
Esta fase difícil da vida teve o condão de transformar o David Bernardino num ser solidário e dos mais competentes da sua geração o que aliado à sua jovialidade e dinamismo lhe grajeam amizades e simpatias por todo o mundo. O curso de Medicina é terminado, em 1958, em Lisboa.
Exercendo a sua actividade como médico em várias províncias angolanas, é no Huambo que atinge plano de destaque. Em 1971, além da sua actividade privada, o médico David Bernardino é o pioneiro angolano do princípio " saúde para todos até ao ano 2000 ". Cria e mantem, a expensas próprias e com dádivas que consegue obter, o primeiro Centro de Saúde de Angola. Com este Centro pretende demonstrar que, utilizando meios locais, é possível formar pessoal preparado e que num curto espaço de tempo e com um mínimo de gastos financeiros conseguir cobrir toda Angola de Centros de Saúde. Divulga, por todo o país, os cuidados primários de saúde. Desta forma o David pretendía adaptar as condições locais à satisfação dos cuidados básicos de saúde.
Este Centro de Saúde é construido num dos bairros mais populosos do Huambo, o bairro de Cacilhas, com material local e com uma arquitectura local e clássica como é a estrutura de um jango. Apesar da inovação não consegue expandir nem materializar a sua ideia nem os seus intentos e mesmo depois da independência de Angola, em 1975, e quando os princípios por ele defendidos eram universalmente consagrados e aceites, também não encontrou o apoio oficial que esperava.
No seu Centro de Saúde de Cacilhas, considerado o barómetro mais efecaz para avaliar a situação angolana, pode sentir-se, a partir de 1988, uma galopante degradação das estruturas de saúde e sociais do Huambo. As crianças do bairro eram uma amostra evidente das precárias condições de vida existentes. Os seus ventres grandes e luzidios assentes em magras e frágeis pernas vacilantes espelhavam a real situação vivida. Eram todas atendidas no Centro.
Mostravam uma comovente gratidão ao doutor David, não por ofertas, actos ou palavras, mas através dos seus olhos alvinegros. Grandes como o Mundo onde despontavam uma fugidia centelha de alegria mesclada de incontida incerteza. O Huambo encontrava-se num confrangedor abandono e o ambiente tinha-se tornado sombrio, de espessa e evidente desconfiança. Mas apesar das condições traumáticas que se viviam, David consegue o mínimo indespensável e mantém a refeição matinal a que habituara a criançada do Centro. Com o apoio dos amigos, das ONG's e da OMS. Nesta época escapa milagrosamente à morte ao pisar uma mina que fez accionar mas não explodiu, quando se aventurava por estradas e caminhos levando saúde e conforto aos que mais precisavam.
O seu empenhamento como homem, médico e intelectual, lutador desde a primeira hora contra o facismo e pela independência de Angola, não lhe vai ser perdoado. Docente universitário, director do jornal independente " Jango ", fundador dos cuidados primários de saúde angolanos, empenhado em diversas acções no campo da investigação científica e histórica, residente no seu Huambo que nunca abandonou, envolvido no apoio social a uma população fustigada por anos sucessivos de uma guerra impiedosa, são outros dos pecados que nunca lhe vão ser perdoados.
E é a 4 de Dezembro de 1992, à saída duma consulta médica no seu Centro de Saúde no Huambo, que David Bernardino é assassinado por um esquadrão da morte dos galos negros. Morto em consequência da sua vida de militância, de coerência, de abnegação, generosidade e coragem.
O seu brutal desaparecimento despertou a indignação em Angola e no Mundo. Manifestações de repúdio e solidariedade chegaram da Bélgica, Portugal, Hong Kong, departamento de Estado Norte Americano, Argélia, Guiné Conakry, África do Sul e de outros países. De Portugal a mensagem mais sentida, pelos angolanos, foi a do actual Presidente da República, Dr. Jorge Sampaio.
Mas os galos armados de ódio e armas que cometeram este acto enganaram-se porque os meninos do Huambo, de Angola, crescerão e com eles crescerá a gratidão e a saudade por aqueles que se consagraram e consagram as suas vidas à felicidade de todo um povo. E como escreveu António Gedeão:

Eles virão e eu morrerei
Sem lhes pedir socorro
E sem lhes perguntar
Porque maltratam.
Eu sei porque é que morro
Eles é que não sabem
Porque matam.

2005-01-01

O Tigre Tarado e o Pequeno Rajah

O Sol escondia-se por trás da mata do outro lado do rio. Ao despedir-se, iluminava o céu de cores vermelhas, enquanto as nuvens recebiam com um sorriso a escuridão da noite. As árvores de bambú pareciam mais altas e finas e os pássaros calavam os seus cantos.
Rajah contemplava o rio, onde se misturavam as cores azuis do céu, os vermelhos do fim do dia e os verdes das árvores. Uma canoa estava na margem do rio. Tudo parado. Até os pensamentos do pequeno Rajah que hesitava. A noite avançava rapidamente. Estava ali tão bem, sentado na areia, os pés dentro da água! Porquê ter de abandonar aquele local? Mas era preciso voltar à aldeia. Escureceu completamente.
A aldeia estava em festa. E qual é a criança que não gosta de festas? As pessoas continuavam a chegar. As notícias corriam de uns para os outros . Rajah juntava-se aos mais velhos, ouvia as notícias e ía depois para debaixo da grande árvore sonhar com as histórias dos adultos. Em breve ficava em silêncio e sonhava, cada vez sonhava mais. Mas nessa noite o pequeno Rajah chorava.
- Porque estás a chorar, Rajah? Perguntou o pai que se aproximou sem ele se aperceber.
- O meu amigo Tarado não veio brincar comigo esta tarde, respondeu.
Tarado era um pequeno tigre. Acordava com o Sol e ainda com o pijama de riscas amarelas e castanhas ia beber água ao rio. Depois brincava até se cansar. Ora corria atrás de outros pequenos animais, ora rebolava na erva macia. De vez em quando dava uma espreitadela para lá dos bambús onde uns animais esquisitos, só tinham duas patas e andavam em pé, trabalhavam na terra fofinha. O pai do Tarado já o tinha avisado para não se aproximar muito daquela terra pois aqueles animais não eram amigos.
Um dia Tarado, descontraido, rebolava pela relva macia quando apanhou um grande susto. Quase junto a si, de pé, estava o pequeno Rajah que já, há algum tempo, se tinha mostrado mas nunca se anunciou. O menino não falou. Percebeu que as palavras nada valiam. O tigrezinho sentou-se e fixou, com o olhar, aquele pequeno ser, bizarro.
Sem uma palavra começaram a brincar, primeiro desconfiados, mais tarde cheios de confiança até se tornarem amigos inseparáveis. A bola corria em todo o matagal, as correrias eram mais que muitas, os saltos para o rio eram uma constante e as horas corriam à velocidade da brisa do vento que soprava cantando canções de embalar e sem saberem que quando voltassem às suas casas as brincadeiras continuavam pela noite dentro no mundo dos sonhos. E das brincadeiras entre Rajah e Tarado os pássaros levaram notícias a todo o mundo.
O tempo passou. Solidários como nunca as duas criaturas foram viajando no comboio do tempo. Mas naquela tarde Tarado não apareceu. Do céu caía uma chuva intensa. O barulho da trovoada era de assustar. Rajah, sentado na canoa à beira do rio esperou até se cansar, depois compreendeu que era noite e chorou. Chorou tanto que dos seus olhos a água era tanta como a chuva que lhe molhou o corpo. Voltou para a aldeia. Havia festa. Festa pela morte do tigre Tarado que, como contavam os mais velhos, tinha um poder misterioso. Rajah, naquela noite, não participou na festa da aldeia.

Em Português nos Entendemos

Se como dizem os poetas " uma imagem vale mais que mil palavras ", as fotografias servem para perpetuar sentimentos de amizade e fraternidade, de afectos e solidariedade, das recordações de brumas de morabeza e cheias de amigos. Que se entendem para além das palavras. Estão juntos na história, na cultura, nas alegrias e nas tristezas.
Os cruzamentos de várias rotas e destinos fazem dos povos unidos por laços e vínculos indissociáveis um perpetuar de futuros comuns onde não há longe nem distância. Há encontros e abraços. Há ideias e convicções. Há palavras e actos. Há abraços. Em português.
E quando os amigos trazem outros amigos, confiam no empenhamento, na adesão, na crítica e na sugestão de todos aqueles que consagram a génese da cooperação como entreajuda e respeito mútuo.
Mas sempre com olhares ternos que servem para reforçar os sentimentos fraternos a que todos nos sentimos unidos. De Portugal a Cabo Verde. De Angola ao Brasil. Da Guiné-Bissau a Timor-Leste. De S. Tomé e Príncipe ao Mundo. Sem esquecer Moçambique.
Solidários.

Um Grito de Revolta Trinta Anos Depois

Um Grito de Revolta Trinta Anos Depois é o título de um livro que Maria Leonarda Tavares lançou no passado 1 de Dezembro de 2004. Autora de diversas publicações, Maria Leonarda Tavares nasceu na aldeia de Carvalhal, concelho de Proença-a-Nova e reside em Arganil, terra natal de seu marido.
Iniciou a sua actividade profissional como tradutora, foi professora no ensino secundário durante alguns anos, profissão que abandonou para se dedicar à causa dos deficientes.
O seu encontro em 1968, com um paraplégico, vítima da guerra colonial, encontro do qual nasceu uma forte união, a história de amor feliz, que se manteve através dos anos, marcaria o começo de uma nova etapa da sua vida. No prefácio do livro Maria Leonarda refere:
... as injustiças não têm parado de crescer. Os sucessivos governos têm aprovado leis iníquas e corruptas que têm permitido, em muitos casos, igualar pequenos e médios incapacitados aos grandes deficientes. A imoralidade legislativa, que tem penalizado as vítimas da guerra colonial e os grandes deficientes civis, obrigou-me, mais uma vez, a denunciar os lobbies que se sobrepõem ao direito e à injustiça. Existem situações tão gritantes que deveriam envergonhar não só os legisladores como os que se candidatam a usufruir delas.
Vivemos uma democracia jovem que ainda não se libertou da herança fascista. Quanto tempo mais vamos ter de esperar? Mas tempo é o que os grandes deficientes da guerra colonial não têm..
O que muitos recebem imerecidamente chegaria, à vontade, para proporcionar uma vida de maior dignidade a quem mais defraudado tem sido por um sistema de compadrio vergonhoso.
Gostaria, no entanto, de deixar bem claro que estou também solidária com os que contrairam pequenas e médias incapacidades, mas continuo a acreditar que devo lutar pela verdade e pela justiça....
Trevim, 30 de Dezembro de 2004